Eu leio, tu lês, ele lê, todos nós lemos!

É de pequeno que se torce o pepino. Para gostar de ler, esse é um ditado perfeito. Quem se habitua aos livros nos primeiros anos de vida, dificilmente se afastará do prazer da leitura. Entretanto, o gosto pelos livros também pode surgir na idade adulta, mas, nessa circunstância, para que deixe de ser uma obrigação e se transforme numa atividade prazerosa, exigirá muito mais disciplina e dedicação. Vi alguns milagres. O "Seu" Vitor, por exemplo, que era meu vizinho na Rua Carajás, lá em Araraquara, aprendeu a ler com quase oitenta anos. Passou a freqüentar a igreja Mórmon, descobriu que conhecer a bíblia era importante, e, sozinho, aprendeu a ler. Só lia a bíblia, mas, todos os dias, passava horas sentado na calçada da sua casa com o livro nas mãos, sussurrando as palavras para ele mesmo. Nada dava mais prazer àquele homem. Já tive a satisfação de iniciar muita gente grande no mundo da leitura. Basta acertar um autor inteligente, instigante, que leve a pessoa para um mundo de sonhos, aventuras, paixões, que ela passa a gostar de ler. É comum os alunos do nosso curso de Expressão Verbal se interessarem mais por leituras quando percebem que não adianta nada aprender a falar bem se não houver conteúdo.

Minha história com os livros é antiga. Nos primeiros anos, antes de ser alfabetizado, contei com a ajuda da minha prima Vanderli Portioli. De vez em quando ela saia de Mirassol e passava uns dias na minha casa em Araraquara, e, nessas oportunidades, com bastante paciência, pegava um livro de histórias infantis e lia para mim. Assim nasceu a paixão pelos livros, embora ter acesso a eles exigia algumas peripécias.

Na época de garoto a grana era curta. Dizer que era curta talvez desvirtue a realidade, pois não tinha de onde tirar. Toda vez que pintava um tostão eu precisava apresentá-lo ao meu bolso, já que um quase nunca via a cara do outro. Só tinha um jeito. O Tunão, que morava na Rua tupi, a uma quadra distante da minha casa, arrumava uns legumes, como chuchu e abobrinha para eu vender de porta em porta e levantar uns trocados. Tudo o que entrava eu gastava em livro na Casa Rodella, uma livraria localizada na Av. São Paulo, no centro da cidade. Nem sei se eles ainda vendem livros. Naquela época em Araraquara as opções de livrarias eram bem limitadas, além da Rodella, havia a Bizelli, a Brasil e a livraria da Marina, perto dos Correios. Os meus livros preferidos eram as edições condensadas das grandes obras publicadas pela Melhoramentos. Lembre-se de que estou me referindo ao tempo em que tinha 12, 13 anos. Cada compra era uma emoção. Começava a ler na rua, e não via a hora de chegar em casa para me sentar na soleira da porta da cozinha e devorar página por página até a última linha. Com tanto sacrifício não dava para ler e descartar. Nunca. Tenho todos eles até hoje. E como sinto prazer em dar uma folheada de vez em quando nesses velhos companheiros.

Bem, como a vontade de ler era muita e a grana pouca, me tornei um assíduo freqüentador da biblioteca, quando ainda era lá na Rua Quatro (Não se impressione com o fato de a rua ser identificada por número, Araraquara sempre teve esse jeito nova-iorquino de denominar as ruas e avenidas por números). O problema é que como eu gostava de ficar com os livros que lia, tinha muita dificuldade para devolver os que tomava emprestado da biblioteca. Só queria ficar com eles mais um pouquinho, reler as partes importantes, analisar como o autor havia resolvido o encadeamento das idéias, enfim, curtir uma história que agora já era minha conhecida. Aí entrava em ação outro fabuloso personagem, o velho Savério Bonavina. Bastava atrasar uns dias e lá estava ele com sua inseparável bicicleta para levar o livro de volta, numa boa. Essa cena se repetiu inúmeras vezes. Sorridente, ele nunca reclamou, nem cobrou um tostão de multa. Parece que entendia bem meu amor pelos livros, e como julgava que ninguém se prejudicava com aqueles pequenos atrasos me ajudava fechando um olho para aquela peraltice. Depois de longos anos, passando boa parte da vida zelando pelos livros da Biblioteca Municipal Mario de Andrade de Araraquara, Bonavina se aposentou. Fui reencontrá-lo mais de 30 anos depois tomando uma cervejinha e batendo papo com os amigos num bar do Jardim Primavera, próximo à sua casa. Perguntei do filho, Zé Bonavina, disse que sempre me lembrava da sua esposa Dona Ana; ele perguntou da minha mãe, Lúcia, do meu irmão, Alemão; relembrei dos tempos em que ele fazia o resgate dos livros e em troca recebi um sorriso igualzinho àqueles que dava quando pegava as obras de volta.

Essa história de usar a biblioteca e não ter sido pontual na devolução dos livros sempre me fez sentir um devedor. Recentemente voltei à biblioteca, agora em novo endereço. Olhei as prateleiras, folheei umas obras, e, para minha grande surpresa, encontrei alguns livros meus com várias fichas de retirada preenchidas. Descobri uma forma de pelo menos em parte pagar minha antiga dívida com a biblioteca. Já que os meus livros eram bem procurados, nada melhor do que fazer uma doação de alguns títulos. Aproveitei uma semana de folga e me dirigi para lá com uns dez livros que publiquei mais recentemente. Fui recebido com festa e muita cordialidade pela Fátima Aparecida Zampiero Ramos, que trabalha lá há 18 anos. Enquanto eu autografava os livros, comentei minhas aventuras com o Bonavina. Para grande tristeza minha fiquei sabendo que ele havia falecido. Que perda. Queria tanto contar a ele que, de certa maneira, eu estava recuperando meu crédito com a doação que acabara de fazer. Mas, quem sabe ele lá de cima não esteja me vendo com aquele sorriso maroto e dizendo baixinho, só para eu ouvir - quem diria que um dia você sozinho poderia trazer livros para a biblioteca, sem que eu precisasse correr atrás com a minha bicicleta.





Reinaldo Polito é Mestre em Ciências da Comunicação, Palestrante, Professor de Expressão Verbal e Escritor. Escreveu 15 livros com mais de um milhão de exemplares vendidos. Seu site www.polito.com.br

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