Como um grãozinho

O renascimento, ou seja, a volta de uma pessoa (qualquer que seja) à vida, com a mesma característica física e mental que tinha antes de morrer, é, objetivamente, absoluta impossibilidade. É uma hipótese restrita, somente, ao terreno da fé. Muitos crêem em ressurreição – aliás, um dos dogmas do cristianismo – para um possível (ou provável?) Juízo Final, em que todos os nossos atos, até os mais corriqueiros e banais, seriam julgados, um a um, e os que reunissem méritos por agir com correção e bondade, gozariam da vida eterna. Já os maus, corruptos, perversos e violentos... seriam destruídos para todo o sempre.

Não entro no mérito da questão. Afinal... há muito mais mistério entre o céu e a terra do que pode supor nossa vã filosofia. Contudo, em termos objetivos, à luz fria da ciência, trata-se de uma impossibilidade fatal. Não se conhece um só caso, comprovado, de alguém que tenha morrido e voltado à vida, retomando suas atividades normais.

Não me refiro a “milagres” (como o de Lázaro), pois não estou tratando de religião. Ademais, cada um crê no que mais lhe convém. Não concordo e nem discordo de quem acredita. E reservo-me o direito de não expor, publicamente, minhas crenças. É questão de foro íntimo.

Há os que crêem que essa nossa parte imaterial, essa energia que comanda o nosso organismo e nos faculta contarmos com o exercício da razão, denominada de “alma”, é imortal. Muitos, inclusive, acreditam em reencarnação. Respeito, reitero, essa e todas as crenças. Mas...

Vou fazer uma provocação com o paciente leitor. Suponha que, de fato, fosse possível recomeçar a vida do princípio, que houvesse a possibilidade de regressão física ao útero materno para um novo nascimento, como você viveria esse recomeço? Fiz essa pergunta, há algum tempo, numa roda de amigos e as respostas foram as mais variadas possíveis. Era de se esperar.

Uns, disseram que viveriam exatamente como já viveram, repetindo tudo o que passaram, pensaram e fizeram tim-tim por tim-tim, sem mudar absolutamente nada. Outros, porém, foram radicais e confessaram que fariam as mais variadas mudanças, desde a família em que nasceram, ao país, condições econômicas, sociais, profissão, aptidões etc.

É impossível, claro, medir o grau de sinceridade de cada resposta. Desconfio que a maioria (se não a totalidade), mentiu, mesmo que inconscientemente, não apenas para o informal pesquisador (no caso, eu), mas cada um para si próprio. Enfim... Ademais, o estado de espírito dos amigos, quando responderam à questão, certamente foi decisivo.

Quem se sentia feliz naquele momento, não queria mudar nada. Quem estava infeliz... Da minha parte, caso renascesse, mas com a experiência e os conhecimentos que já tenho, não faria, também, nenhuma mudança. Claro, se pudesse me valer desse acervo e ele não me fosse apagado da memória. Caso contrário, não valeria a pena arriscar o certo pelo incerto.

Diz-se, amiúde, por aí, que o tempo é o melhor remédio para “todos” os males. Nem sempre é assim. O que está errado nessa afirmação é a generalização. Alguns males, que esgotam os seus efeitos no exato instante que acontecem, por não poderem mais ser remediados, devem, sim, ser esquecidos. É o mais lógico, prático e prudente a se fazer. Para estes, o tempo é, de fato, a solução.

Mas há situações em que pendências não-resolvidas continuam gerando efeitos nefastos, que apenas cessam de nos prejudicar quando solucionadas. Se não resolvidas, elas tendem a se tornar mais graves, progressivamente, e, por conseqüência, mais prejudiciais quanto mais tempo durarem.

Há coisas que não podem ser deixadas sequer para o amanhã, quanto mais para um futuro remoto. Temos que ter sensibilidade e sabedoria para identificar essas situações e não deixá-las pendentes. Imaginem renascer (caso fosse possível, reitero) tendo que administrar essas pendências! Seria muito mais prudente solucioná-las “nesta” vida ou esquecê-las de vez, caso houvessem esgotado seus efeitos.

Se porventura fossem apagados da minha mente os conhecimentos que já tenho e as lembranças do que vivi, e se eu viesse a renascer com o cérebro “virgem”, sem nada nele registrado, como uma folha de papel em branco, deixaria por conta do acaso o novo roteiro da nova vida, correndo os naturais riscos dessa escolha.

Provavelmente, viveria como o poeta norte-americano Philip Levine descreve, nestes magníficos versos: “Deixe-me recomeçar como um grãozinho/de poeira apanhado nos ventos noturnos/deslizando para o mar.../Uma pequenina criança sábia que desta vez vai amar/sua vida, porque ela é diferente de todas as outras”.





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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