Tragédia humana

A incerteza, na opinião do romancista australiano Morris West (e na minha também) é uma das maiores tragédias humanas. Acompanha-nos do berço à tumba e está sempre ali, bem do nosso lado, nos mantendo tensos e inseguros na maioria dos nossos atos. Não estamos certos, por exemplo, ao amanhecer, de que estaremos sequer vivos no final desse dia. Não temos certeza de amar e sermos amados, de que escolhemos a profissão adequada, de que o investimento que fizemos é o mais rentável, ou pelo menos o mais seguro, e vai por aí afora. Incertezas, incertezas e incertezas, de todos os tamanhos e tipos.

Há pessoas cujas obras são tão relevantes que são maiores que suas vidas, das quais a posteridade pouco ou nada conhece. São os casos de Rembrandt, de Mozart, de Auguste Rodin, de Rabindranath Tagore e de tantos e tantos outros. Todos os que sejam minimamente cultos e bem-informados sabem o que fizeram. Contudo, raros, raríssimos, conhecem quem, de fato, foram. Desconhecem suas origens, seus pais, suas esposas, seus filhos, seus mestres, seus inúmeros fracassos e sucessos, enfim, suas biografias. Mas conhecem, de sobejo, (e admiram) suas obras.

Num outro extremo, há pessoas com vidas tão ricas, tão cheias de aventuras, tão públicas, que se não superam em grandeza e importância suas obras, as igualam. São os casos, por exemplo, de Ernest Hemmingway, de Paul Gauguin, de Piotr Tchaikowski, de Fedor Dostoievski, de Arthur Rimbaud e de tantos outros. Entre estes, todavia, destaco alguém que tive o prazer e privilégio de conhecer pessoalmente (episódio que narrei em recente crônica). Refiro-me a Eugene Luther Gore Vidal.

Trata-se de um homem fascinante, pitoresco, curioso, de uma coragem que beira à insensatez, sem papas na língua e que não teme desafiar os poderosos de plantão. É dos tais que não se deixam levar pela onda das idéias pré-fabricadas e opiniões estandartizadas. Sua vida é uma permanente aventura, que desperta curiosidade, atenção, críticas (muitas) e elogios (alguns).

Gore Vidal nasceu na Academia Militar de West Point, no Estado de Nova York, em 3 de outubro de 1925. Seu pai foi um dos pioneiros da aviação, ao lado do nosso Santos Dumont e dos seus conterrâneos, os irmãos Wright. É neto do senador Thomas P. Gore e enteado do padrasto de Jacqueline Kennedy Onassis. É primo em segundo grau do ex-vice-presidente dos EUA, Albert Gore, líder mundial da luta pela preservação do meio-ambiente (o que lhe valeu, recentemente, um Prêmio Nobel da Paz) e que, na sua opinião (e na minha), foi “roubado” nas eleições presidenciais de novembro de 2000 (ganhou no voto popular da chapa George W. Bush-Dick Cheney, mas perdeu na Suprema Corte).

Gore Vidal escreveu seu primeiro romance, “Williwaw”, a bordo de um navio em que servia como fuzileiro naval durante a Segunda Guerra Mundial. Perseguido pelo macartismo, nos anos 50, passou a viver como cigano, mudando de um lugar a outro, numa espécie de auto-exílio. Viveu, por exemplo, na cidadezinha de Antigua, na Guatemala, onde escreveu os livros “Em um bosque amarelo” e “A cidade e o pilar”.

Idealista, liberal até a medula, concorreu, em 1960, ao Senado norte-americano, pelo Estado de Nova York, como candidato do Partido Democrata, mas não foi eleito. Deixou novamente seu país, desta vez para morar na Itália, onde permaneceu por mais de uma década. Apareceu (como ele mesmo), num dos filmes do diretor italiano, Federico Fellini (o “papa” da “nouvelle vague”, de quem se tornou grande amigo), mais especificamente no “Roma”, de 1972.

Junto com o lingüista Noam Chomsky e a ensaísta Susan Sontag, Gore Vidal foi dos poucos intelectuais norte-americanos que ousaram se opor às ações da dupla Bush-Cheney após o 11 de setembro de 2001, quando da destruição das torres gêmeas do World Trade Center de Nova York e de parte do Pentágono, em Washington.

Perguntado, em entrevista por e-mail – publicada pela Folha de S. Paulo em 12 de fevereiro de 2007 – o que havia mudado nos Estados Unidos, seis anos após esse atentado, disse: “Seis anos depois perdemos um dos presentes que os ingleses nos deram como despedida quando deixamos de ser uma colônia: a Carta Magna e, com ela, o hábeas corpus e os devidos processos legais. Mas, por mais que o nosso povo seja mal-educado, mal-informado e lento, o governo Bush é, atualmente, apoiado por menos de 30% das pessoas. Ele já é, como eu previ, o presidente menos popular da nossa história”.

Admirador de Fidel, contrário ao embargo de quase meio século a Cuba, Gore Vidal declarou, recentemente, sobre outro inimigo do ex-presidente norte-americano: “Acho Chavez um cínico fabuloso. Chavez é um herdeiro que honra a revolução iniciada por Castro”, acentuou, referindo-se, claro, ao presidente venezuelano.

A versão oficial, abraçada sem maiores reflexões pela quase totalidade da imprensa ocidental, dos episódios do 11 de setembro de 2001 e das conseqüentes reações da dobradinha Bush-Cheney (atacando o Afeganistão e arrasando o Iraque, a pretexto de implacável caçada a Osama Bin Laden), e as raras contra-versões de intelectuais como Chomsky, Sontag e, sobretudo, Gore Vidal, multiplicam “ad infinitum” o grau de incertezas sobre onde está a verdade. Esta e tantas outras, que tentam nos impingir pelos meios de comunicação.

Daí, não ter como deixar de dar razão a Morris West, quando coloca, na boca de um dos personagens do seu romance “A Torre de Babel”, este questionamento: “Quem estipula o preço? Quem desenha a risca? E porque tem um homem razão e outro não a tem? É esta a verdadeira tragédia da condição humana. Nunca temos certeza. Cumprimos todas as regras, submetemo-nos a todos os mandamentos e conselhos da Bíblia e chegamos sempre à conclusão de que não a temos”. Pois é. A incerteza, quanto ao presente e, principalmente, quanto ao futuro (se é que teremos algum), é ou não é uma das maiores, se não a maior, das tragédias humanas? Gore Vidal que o diga!





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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