À margem de nós

A rotina, quando é construtiva, ou seja, quando o que estamos fazendo é valioso e útil e sugira, portanto, continuidade, não deixa de ser benigna e benfazeja. Todavia, tem um inconveniente: traz-nos o risco da acomodação. Pode ser útil e desejável por algum tempo, mas não “para sempre”.

Aliás, esta palavra, como a sua antônima, “nunca”, é sumamente ambígua, porquanto sugere algo interdito a nós, humanos. Ela apenas seria válida se fôssemos eternos o que, evidentemente, não somos. Nada, portanto, é para “sempre”, embora possa ser por tempo bastante longo.

Fala-se muito de marginalidade, sobretudo a social, sobre exclusão, sobre o fato de considerarmos (e tratarmos) alguns seres humanos como se sequer fossem da nossa espécie. Claro que se trata de uma atitude nociva e, mais, aberrante. A despeito de alguns milênios disso que chamamos, até eufemisticamente, de “civilização”, ainda não aprendemos a nos relacionar, com solidariedade e justiça, com todas as pessoas. Tenho minhas dúvidas se algum dia aprenderemos.

Todavia, há uma espécie de marginalização tão grave (ou mais) quanto a social: é quando ficamos à margem de nós mesmos. É quando nos desconhecemos e, por isso, nos vemos incapazes de controlar pensamentos, sentimentos e, sobretudo ações. Há milhões de pessoas, mundo afora, vivendo à margem de si próprias. Não se gostam e, por isso, são incapazes de gostar dos outros. Não se entendem e não conseguem entender a quem quer que seja.

Fazem de suas vidas maçantes rotinas e são incompetentes para dar um único passo adiante e assim sair do “círculo de giz”, que elas próprias traçaram e que as mantém presas a hábitos sem sentido, a relacionamentos sem futuro (e muito menos presente), a idéias estereotipadas que sequer compreendem, e assim por diante, como se fosse indevassável prisão, intransponível muralha.

Mantêm, sempre, as “mesmas roupas usadas” (figurativamente, claro), como diria Fernando Pessoa, sem que se sintam capazes de mudar uma só vez as vestimentas. Cristalizam a mediocridade que, com os anos, finda por se petrificar. Marginalizam-se de si próprias. Sufocam sonhos, sem que os revelem para ninguém, e afogam afetos, como muitas vezes fazem com gatinhos recém-nascidos.

Mesmo que não tenhamos personalidade ousada, temperamento aventureiro e apostemos na segurança (o que, quando sem exageros, tem o nome de prudência), há momentos na vida em que temos que nos aventurar. Temos que trocar as vestes que, como Fernando Pessoa ressalta, “já têm a forma do nosso corpo”, e mudar os “caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares” por outros, que sequer sabemos onde irão desembocar, mas que devemos trilhar, mesmo que com medo e insegurança.

Isso é o que se chama “viver”. É tentar, tropeçar, errar, voltar a tentar, cair, se levantar, mas seguir em frente, sempre adiante, numa vasta sucessão de experiências. Algumas, certamente, serão amargas, mas temos que correr esse risco. Outras, nos deixarão cicatrizes, ainda assim válidas, pois muitas das lições que nos compete aprender são aprendidas com dor.

Fernando Pessoa refere-se a esse tempo de mudanças em nossa vida como “o da travessia”.. Comparo-a à empreendida pelos hebreus, ao saírem do Egito, sob o comando firme de Moisés. Eles não hesitaram diante do obstáculo representado pelo Mar Vermelho, aparentemente instransponível. Avançaram, decididos, em direção do aparente perigo. Confiaram e as águas se abriram à sua passagem, para que fizessem a travessia.

E seu espírito de aventura não parou por aí. Os hebreus vagaram 40 longos anos pelo inóspito e perigoso Deserto do Sinai, tendo em mente a Terra Prometida que um dia lograram a alcançar. Muitos dos que saíram do Egito ficaram pelo caminho. Mas seus descendentes conseguiram chegar ao que mais almejavam quando submetidos à humilhante e terrível escravidão no Egito: à liberdade.

Mudemos, pois, nossas vestes. Troquemos os atuais caminhos que conhecemos por outros, desconhecidos, que podem, é verdade, nos levar ao desastre, mas também à felicidade. Atravessemos o nosso Sinai. Não nos deixemos constranger pelo Mar Vermelho à nossa frente. Atravessemo-lo, sob o risco de nos afogar. Por que, como Fernando Pessoa destacou muito bem, se não ousarmos fazer essa travessia, “teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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