Vitória da vida

“O ser humano, no relativamente curto tempo que a espécie existe, ainda não aprendeu a valorizar a vida, nem mesmo a sua, quanto mais a das demais criaturas. Ela, no entanto, é um mistério, é um privilégio, é um milagre”. Iniciei, recentemente, uma das minhas crônicas (há quem as classifique como ensaios, sei lá), dessa maneira. Estava certo? Em parte! De fato, a maioria das pessoas – e não apenas da atual geração, mas, principalmente, das milhares e milhares e milhares que nos antecederam – sempre estiveram entregues ao que costumo classificar de “cultura da morte”.

Nesse mesmo texto, justifiquei minha afirmação – que teve o “pecado mortal” da generalização – observando: “Hoje em dia, filmes, romances, novelas e peças teatrais apresentam cenas em que determinados personagens matam outros com a maior naturalidade, como se fosse ato banal e corriqueiro. O pior é que as crianças crescem sob essa estúpida cultura da morte, que lhes é incutida a pretexto de se tratar de ‘arte’”.

Cometi algum deslize ao fazer essa afirmação? Creio que não. Todos, até os mais alienados dos alienados, sabem que isso acontece. O procedimento corriqueiro, quase instintivo, de bilhões de pessoas ao redor do mundo é, mesmo, este. Matar tornou-se um procedimento banal. Poucos atentam para o que Albert Einstein, um dos cérebros mais lúcidos dos bilhões de pessoas que já passaram pela Terra, buscou transmitir quando escreveu no seu livro “Como vejo o mundo”: “A vida é sagrada, representa o supremo valor a que se ligam todos os outros valores”.

Convenhamos, isto é o que deveria ser enfatizado, sempre, sempre e sempre; cotidiana e incansavelmente, às crianças, aos jovens, aos adultos, a todos, indistintamente, no lar, nas escolas, nas igrejas, como se fosse um mantra e não essa estúpida e absurda cultura da morte que lhes é impingida subliminarmente. Se a arte não nos proporciona exemplos nobres e construtivos – não, pelo menos, em quantidade desejável – a realidade, que supera qualquer ficção em termos de surpresas e comportamentos insólitos, ou seja, incomuns – o faz. Basta atentarmos a ela.

Sinto-me sumamente privilegiado por ter sido testemunha – através do milagre da televisão – do desfecho do drama que envolveu os trinta e três mineiros da mina de cobre San José, no Deserto de Atacama, norte do Chile, pelas lições que todo esse prolongado episódio nos deixou. Simultaneamente, sinto-me pequeno em demasia, sumamente incompetente, sem vocabulário adequado e de mente “engessada”, para descrever os sentimentos que esse caso me suscitou. Fico imaginando o terror pelo qual esses 33 trabalhadores passaram. Sou um tanto claustrofóbico e não suportaria 15 minutos que fossem em um ambiente fechado, que nem precisaria ser uma mina e muito menos dessa fundura. A possibilidade de ficar trancado em um simples elevador já me aterroriza.

Imaginem o que é ficar retido a 700 metros de profundidade, ou seja, quase um quilômetro, mas de fundura, sem nenhuma chance de sair dali, não pelo menos sem ajuda externa, e com muitíssima sorte! Uma situação como essa, por um único dia, já seria um terror para qualquer ser humano normal. Imaginem ela perdurando por mais de dois meses, por 68 dias para ser exato (o desmoronamento que os manteve confinados ocorreu em 5 de agosto de 2010)!

Jamais soube de caso sequer remotamente parecido, quanto mais semelhante ou igual. Se algum escritor inventasse um enredo como esse, seria liminarmente ridicularizado. Seria classificado, provavelmente, de maluco. No mínimo, teria sua capacidade posta em dúvida pela “inverossimilhança” da situação que teria criado. Porém... isso ocorreu. E mais, foi registrado e testemunhado por bilhões de pessoas ao redor do mundo, para que ninguém duvidasse.

Esse caso é campo fértil para o estudo de cientistas de diversas disciplinas, como biologia, antropologia, etologia (a ciência do comportamento) entre outras e até de filosofia. Identifico, no episódio, a presença de todos os valores que me são caros e que caracterizam o homem como ser racional, dotado de razão e de livre-arbítrio. Posso citar, por exemplo, a fé. Se esses trabalhadores não acreditassem que poderiam sair vivos dessa profundíssima cova, não sairiam. Isso evitou seu desespero e atos tresloucados. Aliada à fé, a esperança no sucesso do resgate esteve presente o tempo todo. A solidariedade destacou-se desde o princípio, sem a qual, convenhamos, não seria sequer tentada alguma operação, de êxito a priori tão improvável, como a que foi levada a bom termo.

Querem outra virtude que esteve presente? O espírito de equipe. Uma outra? A disciplina. Mais uma? A bondade da população chilena, que se mobilizou para que tudo desse certo. Outra? O amor dos mineiros por suas esposas e filhos e vice-versa. Em vez de ficarem exibindo, pois, nas televisões e cinemas, filmes dos “Rambos” da vida, e outros tantos em que a cultura das morte é exaltada, por que não exibir nos lares, nas escolas, nos centros culturais etc., “ad náusea” se for necessário, o vídeo dessa magnífica operação?!!

Destaque-se a eficiência e a capacidade de iniciativa das equipes de socorro. E, principalmente, a competência dos engenheiros e, sobretudo, do sujeito que teve a idéia de construir a “Fênix”, a cápsula de resgate, obra feliz até no nome. Se eu fosse o sujeito encarregado de tomar as decisões e alguém me dissesse que os mineiros confinados poderiam ser salvos daquelas profundezas cavando-se um buraco de 50 centímetros de diâmetro, que chegasse até eles, 700 metros abaixo da superfície, através do qual se desceria um frágil cilindro, que me pareceu feito de plástico, e apertadíssimo, eu chamaria esse indivíduo, no mínimo, de irresponsável. Não permitiria, por conseqüência, de jeito nenhum, a operação, da maneira como se desenvolveu. Todavia... foi a forma pela qual os heróicos trabalhadores, exemplos de coragem, disciplina, determinação e, sobretudo, amor à vida, foram salvos.

São episódios extraordinários, como este, que renovam a minha fé no ser humano, que a todo o instante vinha (e ainda vem) sendo abalada, por tudo o que testemunho, vejo, leio e ouço. Em meio a esse “circo de horrores” que o mundo é (desde o surgimento do homo sapiens na face da Terra), é confortador esse hiato de coragem, fé, esperança, solidariedade, amor, bondade e todas as nobres virtudes e valores que o ser humano desenvolveu. E tudo manifestado por 33 pessoas humildes, iletradas, trabalhadores braçais – gente que, não fosse o episódio, jamais se destacaria em nada. Eles mostraram que o homem sabe relativamente muito sobre muitas coisas, mas desconhece o essencial: os limites de resistência e a grandeza do próprio homem. Ou seja, não sabe com exatidão o que é...





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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