O jornalista e o escritor

A literatura, ao contrário do jornalismo, pode, e deve ser alegre e positiva. Há muito escritor que confunde o seu papel com o do jornalista, ao qual compete levar, todos os dias, a milhares, quiçá milhões, de lares, a realidade do cotidiano. A matéria-prima deste último é o fato, nu e cru, na maioria dos casos cruel, revelando os personagens e o enredo "non sense" desse drama doido que se representa no palco do mundo. A ele sim compete distilar as tensões do convívio humano. É sua ingrata tarefa chocar, inquietar, despertar, conscientizar, mobilizar e até indignar seus semelhantes, na esperança (provavelmente vã) de fazer com que as pessoas entendam o óbvio. Ou seja, que a arte de viver é simples. Que consiste em fazer tudo da melhor forma possível e nunca interferir na vida alheia, a não ser para ajudar.

Já a matéria do escritor é mais sutil. É o sonho, é a fantasia, é a esperança, é a beleza, é a idealização do amor. Quem pega um livro para ler, ou quer aprender algo que melhore o seu desempenho profissional, cultural ou social, ou procura uma luz no fim do túnel para suas angústias e desesperos. A maioria quer fugir das tensões, embora muitas vezes relute em confessar, para não ser considerado "tolo" por outros, que secretamente têm o mesmo desejo. Daí procurar fugir de enredos muito elaborados, de cenas de extrema violência e de situações psicológicas em que personagens são mergulhados de ponta cabeça nas profundezas do inferno de desespero e angústia.

O maior escritor brasileiro de todos os tempos, sem favor algum, Machado de Assis, obteve a dosagem exata na narrativa de uma boa história. Mesmo nos seus romances mais dramáticos, perpassa uma brisa saudável de alegria, de compreensão, de simpatia para com os que sofrem, mesmo que sejam os responsáveis por esse sofrimento (todos somos, por uma razão ou por outra). Carlos Drummond de Andrade, na poesia, também foi dessa estirpe, apesar do seu irônico desencanto face aos homens.

Antônio de Alcântara Machado igualmente recomendou essa fuga da sisudez, da tensão, do "preciosismo do sadismo" de que muitos romancistas consagrados lançam mão amiúde, com realismo extremamente cru, e que machuca. Escreveu, em seu livro "Cavaquinho e saxofone": "Um dos maiores benefícios que o movimento moderno nos trouxe foi justamente esse: tornar alegre a literatura brasileira. Alegre quer dizer: saudável, viva, consciente de sua força, satisfeita com seu destino. Até então no Brasil a preocupação de todo escritor era parecer grave e severo. O riso era proibido. A pena molhava-se no tinteiro da tristeza e do pessimismo. O papel servia de lenço. De tal forma que os livros espremidos só derramavam lágrimas".

Esse arroubo de alegria, porém, deve ter sido característica dos tempos de Alcântara Machado. Hoje, a maioria dos escritores tornou a enveredar não apenas para a gravidade e sisudez, mas para a miséria que assola o nosso povo. Os escribas contemporâneos querem competir com os jornalistas na transposição da realidade para o papel, o que não é a sua tarefa. Querem roubar-lhe a matéria-prima do seu "affaire". Desfile de desgraças – locais, nacionais e internacionais – é prerrogativa da imprensa, que malha em ferro frio dia após dia, sem nenhum resultado. A violência só faz crescer. A corrupção multiplica-se em progressão geométrica. A exploração do homem pelo homem transforma-se em regra, mesmo que cinicamente os que lançam mão dessa prática a neguem e até apregoem a igualdade de direitos e oportunidades para todos.

Não. Retratar a realidade, definitivamente, não é o papel do escritor, esse mágico da palavra, esse saltimbanco dos sentimentos, esse ser abençoado que sublima as suas angústias, confessa os seus fracassos, admite as suas fraquezas e faz dos próprios defeitos, da exposição pública daquilo que traz no mais íntimo de suas emoções, flores de ternura, brisas de esperança, monumentos de beleza. Qual a fórmula para essa literatura alegre? Leonardo Sciascia, em entrevista dada em 1984 e reproduzida no "Caderno de Sábado" do Jornal da Tarde em 13 de maio de 1995, dá uma indicação.

Diz o romancista italiano, falecido em 1989: "Escrevo com prazer. Dificilmente reescrevo. Escrever, para mim, é dobrar e desdobrar o prazer de viver. Coloco-me eu mesmo no lugar do leitor. Ou melhor: considero o leitor um outro eu mesmo. Sinto que assim não posso me enganar. Quando uma página custa demais para sair, já sei que vai custar também para ser lida, que não convencerá plenamente o leitor. E a verdadeira literatura diferencia-se da falsa pelo inefável senso de verdade". Eu diria que pela alegria de que está embebida e pelo prazer que dá a quem a lê. O "baixo astral" deve ser deixado apenas para os que apreciam o sofrimento, próprio ou alheio. Afinal, existe quem tenha tamanho mau gosto.





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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