Questão de interpretação

Estive raciocinando cá com meus botões: como nossos textos de hoje, nossos livros, nossas crônicas em jornais e revistas, nossos poemas postados em blogs, serão interpretados (e entendidos) pelos leitores do futuro, digamos, do ano de 2500 (caso sobrevivam, claro, e caiam em mãos de pessoas que vivam nessa época)?

Irão entender o que escrevemos? Sim, porque, provavelmente, a linguagem, então, será muito diferente da atual. Ou irão precisar de um novo “Champolion”, que descubra uma espécie de “pedra de roseta” dos nossos tempos, que possibilite a decifração dos nossos inúmeros alfabetos e cerca de 20 mil idiomas e dialetos que há pelo mundo afora neste século XXI?

Claro que estas reflexões não têm o mínimo sentido prático. Todavia, são ótimo exercício de imaginação. Portanto, por que não fazê-las? Muito do que escrevemos já não é interpretado como gostaríamos hoje, quanto mais num futuro remoto.

Por isso, defendo uma forma de se expressar simples, despojada e direta que, sem perder a elegância que se requer de um literato, seja entendida por todos os que forem alfabetizados, não importando seu grau cultural e nem quantos diplomas colecione (se inúmeros ou se nenhum).

Ainda assim, não há a menor segurança de que nossos anseios, desejos, temores, esperanças, certezas etc., contidos em nossos textos, venham a ser minimamente compreendidos pelos eventuais leitores do futuro.

Tenho em mãos um romance, escrito por Walter M. Miller Jr., lançado no início dos anos 60 (e que não chegou a fazer grande sucesso), intitulado “Um canto para Leibowitz”, que ilustra a caráter estas considerações.

O enredo apresenta monges de determinada ordem religiosa (que não tem absolutamente nada a ver com as atuais), que, encerrados em um mosteiro, copiam fielmente e conservam com o máximo zelo textos científicos, que sobraram de uma guerra nuclear que pôs fim a uma civilização.

Como não entendem os conceitos expostos nesses livros, que coletaram nas raras bibliotecas não incendiadas, atribuem-lhes um significado divino, sagrado, mágico, transcendental. Os monges em questão já são da terceira ou quarta geração dos sobreviventes da hecatombe nuclear. Não têm a menor noção do que estão copiando. Sabem, através dos mais velhos, do desastre que se abateu sobre a Terra, mas desconhecem sua causa.

Um dia, porém, surge um desses gênios, que nascem em quantidades ínfimas a cada geração, com nível de compreensão inexplicável, mas bem acima da média, maior do que a maioria. Ele lê, entende e interpreta a documentação científica copiada pelos diligentes monges da ordem de São Leibowitz.

Alguns desses textos explicam (e detalham) como se poderiam fabricar bombas atômicas (cuja fabricação, aliás, nem é tão complicada assim. Não faz muito, circulou na internet a “fórmula” de produção desses artefatos perigosíssimos, cuja “utilidade” é apenas o extermínio em massa de populações). E, com a interpretação dos textos, supostamente sagrados, mas que na verdade eram profanos e mais, sumamente malévolos, a Terra voltou a ficar em perigo.

Quem quiser saber o desfecho desse romance, que o procure em algum sebo e o leia. Não serei eu o estraga-prazer de ninguém. O que quero ressaltar é o caráter de permanência dos nossos textos. Depois de escritos, e publicados, são como filhos que deixam o lar paterno a perambularem pelo mundo.

Perdemos a ascendência sobre eles e, não raro, até o contato com os mesmos. Podem se tornar líderes revolucionários, condutores de povos para a liberdade, solidariedade e justiça, ou perigosos e sanguinários bandidos, especialistas em violência e destruição. Quanto aos textos, nunca sabemos em que mãos, e quando, irão parar. E isso multiplica, claro, a nossa responsabilidade ao infinito. Pense nisso.





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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