E se perdermos a memória?

A memória é extremamente complexa, mas também é muito frágil (como ademais nós, humanos, o somos em nossa integralidade). Determinadas circunstâncias, traumas e doenças implicam em sua perda, que pode ser parcial (com diversas intensidades) ou total, passageira ou definitiva. Alguns confundem-na com inteligência. Reter, todavia, uma informação ou experiência (ou inúmeras delas) não implica em entendê-las.

Posso ser, por exemplo, uma enciclopédia ambulante e desfiar, com a maior rapidez e facilidade, nomes e mais nomes de pássaros, pedras, cidades etc. etc.etc. e não entender sequer o mínimo dos mínimos do que me cerca. Serei, nessas circunstâncias, certamente, privilegiado em termos de memória. Neste caso, todavia, não posso ser considerado “inteligente” só por causa disso, porquanto a inteligência, como a própria palavra já sugere, é a capacidade de entendimento.

O tema, sugerido pela doutora Mara Narciso, é fascinante e impossível de ser tratado condignamente em um único texto, quanto mais ser esgotado. Ademais, nem tenho essa pretensão. Tentarei dissecá-lo, nos próximos dias, de forma mais didática possível, de sorte que fique acessível a qualquer tipo de leitor. Faço questão de bater bastante nessa tecla até por se tratar de assunto bastante explorado em literatura.

Quem nunca leu, por exemplo, algum livro que tenha pelo menos um personagem desmemoriado (que, se idoso, o vulgo chama de “caduco”), esquecido ou vítima de fulminante amnésia? Só no cinema, lembro ter assistido pelo menos uns três filmes envolvendo essas questões. Certamente, existem muitos mais.

Há quem ache que, para determinadas pessoas, e em algumas circunstâncias, o absoluto esquecimento seja na verdade uma bênção. Discordo. Nunca é. Por mais sofrida que tenha sido a vida de alguém e por mais que este queira esquecer tais sofrimentos e traumas, junto com as más lembranças, perderá, também, as boas, provavelmente em maior quantidade, além da consciência de quem é, onde está e o que lhe ocorre. A perda de memória, notadamente na velhice, é sempre uma tragédia.

Conheço pessoas que não conseguem lembrar sequer a fisionomia dos filhos, que não identificam quando os vêem. Há lapsos de memória menos severos, porém não menos constrangedores ou até perigosos. Pequenos esquecimentos podem resultar, não raro, em grandes problemas, quando não tragédias. Como por exemplo, a pessoa não lembrar se tomou na hora certa ou não o medicamento essencial sem o qual não pode passar. Ou, o que é pior, tomá-lo várias vezes seguidas, esquecida de já o ter tomado há minutos, sujeitando-se a uma baita intoxicação medicamentosa ou, até mesmo, ao envenenamento. E isso é muito mais comum do que se pensa. A doutora Mara que o diga, dada sua experiência profissional.

Para muito idoso, as boas lembranças são a única coisa positiva que lhes resta para, se não aplacar, ao menos amainar a solidão. Quanto às más? Há formas e formas de bloqueá-las, de sorte que não o atormentem (tanto). A memória, na verdade, registra pouquíssimos fatos que nos digam respeito literalmente. Com o tempo, distorce os acontecimentos, fantasia-os, romanceia-os, idealiza-os. “Transforma” até lembranças horríveis em boas (e vice-versa).

Fiz, recentemente, um teste a propósito que, embora sem valor científico, me foi bastante revelador. Tenho o hábito de registrar em um diário os principais episódios que me envolvem no dia a dia. Faço isso há já 25 anos, sem falhar um único dia. Relendo essas páginas, que ascendem às milhares, com o distanciamento de alguns anos, não me recordo de muitos e muitos dos acontecimentos que registrei, mesmo descrevendo-os meticulosamente. É como se cada fato citado saísse de minha imaginação, fosse mera criação literária, não passasse de um conto. Caíram no esquecimento e só sei que ocorreram porque estão ali, descritos, com detalhes, expressando a emoção que despertaram, em letra de forma, quando da sua ocorrência.

O filósofo britânico sir Bertrand Russell também tratou do assunto. Em sua "História da Filosofia Antiga", observou: "Quando nos lembramos, as lembranças nos ocorrem agora, e não são idênticas ao acontecimento lembrado. Mas a lembrança nos fornece uma 'descrição' do acontecimento passado e, para a maioria dos fins práticos, não é necessário distinguir entre a descrição e aquilo que é descrito".

Por isso, não costumo me fiar muito na exatidão da chamada "Literatura Memorialística". Encaro o que é descrito como "ficção calcada em fatos reais". A menos que se trate de diário, reproduzido na íntegra, sem tirar e nem pôr, literalmente como foi escrito, dia por dia. Mesmo então, a carga de subjetividade é muito grande. O mesmo fato pode ser encarado e descrito de formas diferentes, dependendo do observador. Quando os textos são bem escritos e os episódios são interessantes, esse é um dos tipos de literatura que mais aprecio. Mas nunca tomo a narrativa em sentido literal.

Como se vê, não devemos confiar cegamente na memória. Ela, amiúde, nos atraiçoa. E como!! Lembrar coisas agradáveis que nos aconteceram (ou que “acreditamos” terem acontecido) pode ser salutar desde que não exageremos na dose. Aliás, tudo o que passa da medida é ruim. O que não se pode é tentar “viver no passado”, abrindo mão das perspectivas abertas pelo presente.

Vivamos plenamente cada dia, com bom-humor e alegria, buscando sempre fazê-lo melhor e mais feliz do que o anterior. Claro que não recomendo que se descartem as boas lembranças. Pelo contrário, aconselho as pessoas que se valham desse delicioso “calmante” natural para adoçar uma realidade não raro amarga. Mas não podemos fazer dessas “memórias” (e seriam memórias mesmo?) uma espécie de panacéia para a felicidade. Mesmo que autênticas (provavelmente não são) são passado. Não voltam mais e jamais podem ser reprisadas. Se tentarmos, o resultado, fatalmente, será o da frustração.

A vida não comporta reprises. Acho sábia (por ser verdadeira), esta metáfora criada pelo escritor Austin O’Malley: “A memória é uma velha louca que joga comida fora e guarda trapos coloridos”. O alimento (espiritual, no caso) desperdiçado, são os bons livros lidos, os exemplos edificantes testemunhados e os relacionamentos elevados que tivemos a oportunidade de vivenciar e que findamos por esquecer. Quanto aos trapos coloridos... São as lembranças pungentes das quais devemos nos descartar ou, pelo menos, neutralizar. Certamente voltarei ao assunto.





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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