O vinho da vida

O que é literatura? Essa é uma pergunta recorrente, que me faço, amiúde, e que já respondi inúmeras vezes, sem que, todavia, nenhuma das minhas respostas, quaisquer das tantas definições que busquei dar, todas as caracterizações que procurei fazer, enfim, tudo o que disse e escrevi a propósito me convencesse. Sempre faltou alguma coisa. O que? Não sei. Se soubesse, preencheria a lacuna e nem pensaria mais a respeito.

Não faz muito, neste mesmo espaço, em uma de minhas tantas reflexões diárias (e põe tantas nisso!), indaguei: “A literatura tem alguma importância prática em nossa vida, ou não passa de mero passatempo (posto que muito agradável), uma espécie de refinado lazer?” E ponderei, antes mesmo de arriscar-me a dar uma resposta: “Sou suspeito (suspeitíssimo) para opinar, posto que vivo dela (da literatura, claro). É o meio pelo qual obtenho meu sustento”.

Emendei, mais adiante, já que evito ficar em cima do muro e não temo em emitir opinião quando a tenho formada, mesmo que incompleta ou imperfeita: “Entendo, todavia, que a literatura é muito importante para a ‘fermentação’ de idéias, para o estudo do comportamento das pessoas e para nos indicar, sobretudo, o que não devemos fazer, caso tenhamos intenção de obter sucesso em nossas atividades e na convivência do dia a dia. Contudo, ela tem lá sua importância, mesmo que relativa. Nem é inútil, como acusam os que não sabem ou não gostam de ler, e nem essencial à vida, como pretendem os que a produzem”.

Para fundamentar essa opinião, citei o que escreveu a propósito o ensaísta escocês, Thomas Carlyle: “A literatura é o vinho da vida, mas não pode ser o seu alimento”. Claro que concordo com essa opinião. Caso não concordasse, sequer a citaria. Porquanto, a bebida, se tomada com moderação, nos dá prazer. Mas se ingerida em excesso... embriaga e não alimenta.

Não estou sozinho nessa busca de definição do “fazer literário” e de descobrir se tem ou não utilidade prática. E, se tiver, qual ela é? Separei dezenas de declarações a propósito, de escritores dos mais variados gêneros, épocas, países e tendências, embora não pretenda maçá-lo, caro leitor, com essa enxurrada de erudição. Cito, todavia, o que o argentino Ricardo Piglia pensa (ou não pensa, mas inquire) a respeito. Por que o escolhi, e não a outro qualquer? Por vários motivos. Um deles é que se trata de escritor da minha geração, meu contemporâneo. O outro (o principal deles) é que gosto do seu modo de escrever, do seu estilo, das suas idéias, da sua lucidez. E o outro, ainda, é que penso exatamente a mesma coisa acerca do que declarou.

Ricardo Piglia afirmou: “Para mim, a literatura é um espaço fraturado, onde circulam diferentes vozes, que são sociais. A literatura não está posta em nenhum lugar como uma essência; ela é um efeito. O que torna um texto literário? Questão complexa, à qual, paradoxalmente, o escritor é quem menos pode responder. Num certo sentido, um escritor escreve para saber o que é a literatura”. Pois é, escrevemos no afã de fazermos essa descoberta. Talvez, até, já a tenhamos feito e, contudo, não tenhamos certeza sobre nossas conclusões.

Ainda em referência ao meu texto, que citei anteriormente, ponderei, na oportunidade: “Se a literatura é importante na vida das pessoas (e estou absolutamente convicto que é), qual é seu verdadeiro papel no estudo dos seres vivos (principalmente dos humanos)? Para quê ela serve? Para divertir, ou para instruir, orientar, analisar e concluir?

Alguém pode, a esta altura, perguntar: ‘mas não temos a ciência para isso?’. Temos. Mas somente ela não basta. A vida não se restringe a leis naturais e imutáveis e nenhum ser vivo reage de forma absolutamente igual. Ela é sutil e não comporta análises mecânicas e genéricas. Para sua compreensão, são necessários exemplos, das várias formas de comportamento das pessoas. Ainda assim, somos incapazes de compreender em profundidade esse maravilhoso mistério, esse privilégio, essa magnífica aventura que é viver”.

E, mais uma vez, recorri a um nome ilustre para fundamentar o que afirmei. Dessa vez “convoquei”, para o papel de testemunha, o escritor, sociólogo e filósofo francês, Roland Barthes, que declarou a respeito: “A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa”. Pois é, e importa mesmo. E requer de quem a exerce não apenas rigor, correção (sobretudo na linguagem), mas, sobretudo, responsabilidade. Afinal, literatura não se faz oralmente, mas através da escrita.

Ponderemos. Se na conversação informal, naquela que utilizamos no dia-a-dia, no lar, no trabalho e em nossas relações sociais; a comum, trivial, corriqueira e na maioria das vezes eivada de incorreções vocabulares e gramaticais, e que quase nunca é policiada, temos enorme responsabilidade por tudo o que dizemos (embora sequer atinemos), dadas as conseqüências produzidas, muito mais importante se torna, é evidente, o que escrevemos, e como o fazemos. Nunca sabemos, por exemplo, em que mãos esses textos vão cair, qual o uso que deles será feito e, principalmente, por quem. Eles podem tanto nos engrandecer, como depor contra nós, quando não estivermos mais aqui, neste mundo (e provavelmente em nenhum outro) e, portanto, não pudermos nos defender ou justificar.

A tarefa da comunicação se complica, para muitos (e põe muito nisso!), quando feita através de texto. Implica, a priori, no conhecimento da grafia das palavras, das regras gramaticais, do significado exato de cada termo. A principal virtude de um bom redator, notadamente do escritor, é a clareza, seguida da concisão. É indispensável que se faça entendido.

Além disso, o que se escreve precisa ser interessante, tem que atrair o leitor, e prender a sua atenção. O comunicador (no nosso caso, o escritor) precisa, sobretudo, atentar para o essencial: o que vai comunicar e para quem. O que tem a dizer vai esclarecer os leitores, ajudar a formar uma opinião, servir de acréscimo ao seu acervo cultural, ou se trata, somente, de um conjunto de lugares-comuns, de um tosco rosário de críticas inconseqüentes, ou de um monótono desfiar de lamúrias neuróticas?

Caso não vá construir, ajudar ou orientar, o melhor é sequer escrever. A comunicação é importante demais para ser feita de forma desleixada, incompetente e desastrada. E Literatura é, antes e acima de tudo, a forma mais nobre e refinada de comunicação. É “o vinho da vida”, que dá prazer de fato a quem sabe apreciá-la, mas cujo consumo requer cautela, posto que “embriaga” e bagunça o tirocínio e a razão..





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

O conteúdo veiculado nas colunas é de responsabilidade de seus autores.