Poeta singular

A força da sua poética situa Castro Alves entre os mais notáveis, criativos e vibrantes poetas não apenas do seu tempo, mas da história da literatura mundial. Sua poesia é singular. Alia metáforas perfeitas com ritmo e rimas originais. É forte, é vibrante, é combativa, é eterna. Volto a tratar dele, por não entender a pouca importância que se lhe dá, hoje, quando sua poesia deveria ser estudada, analisada e apreciada com mais freqüência e um olhar despido de preconceito. Castro Alves foi um escritor singular.

O poeta cria a realidade... Não para egoístico uso próprio. Antecipa-se ao tempo. Avança lustros, décadas, séculos, milênios. Como farol em mar tempestuoso, ilumina o caminho das gerações vindouras. Mantém acesa a chama do ideal. Espalha-a pelo mundo, em um incêndio que, mais cedo ou mais tarde, devora tiranos e tiranias.

"Quebre-se o cetro do Papa,
faça-se dele uma cruz!
A púrpura sirva ao povo
pra cobrir os ombros nus...
Banhem-se em luz os prostíbulos.
E das lascas dos patíbulos
erga-se estátua aos heróis".

O poeta antecipa a manhã luminosa do porvir, de um futuro provavelmente muitíssimo distante, quando as armas serão transformadas em arados, quando o leão e a ovelha puderem conviver em harmonia, quando cada homem, mulher e criança, todo ser humano, sem distinção de sexo, etnia, cor ou convicção religiosa, for livre, fraterno e gozar de absoluta igualdade de direitos e oportunidades.

Em 1868, durante uma caçada, Castro Alves sofreu um acidente. Feriu um pé. Os recursos da medicina de seu tempo, evidentemente, eram bastante precários. Não existiam as técnicas de assepsia de hoje e muito menos os antibióticos. O ferimento arruinou e agravou o estado geral da sua já precária saúde. O pé teve que ser amputado. Sabe-se lá as condições dessa amputação!

Ao abatimento físico, somou-se o moral. O desânimo por se ver mutilado, as febres constantes, o avanço da tuberculose, doença que no século passado era letal, quase incurável. Três anos depois, aos 24 anos de idade, o poeta viria a falecer. Embora autor de três únicos livros, sua genialidade era tamanha, que apenas estas obras bastaram para garantir-lhe a imortalidade.

No início do trágico ano de 1868, aquele em que sofreu o acidente de caça que lhe minaria a resistência, embarcou para o Rio de Janeiro, a capital do Império, acompanhando a atriz Eugênia de Castro, pela qual era apaixonado. Mostrando que seu talento havia extrapolado o Nordeste, mais especificamente o eixo Salvador-Recife, recebeu rasgados elogios nada menos do que deste mito da Literatura brasileira que foi Machado de Assis.

Em um artigo publicado em 22 de fevereiro de 1868, na Gazeta Mercantil, o autor de "Dom Casmurro", de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e de outras obras geniais e que anos mais tarde seria o fundador da Academia Brasileira de Letras, escreveu sobre Castro Alves:

"Parece ao poeta que o tablado é pequeno, rompe o céu de lona e arroja-se ao espaço livre e azul...Deve fazê-lo sem temor. Contra a conspiração da indiferença, tem vossa excelência um aliado invencível: a conspiração da posteridade".

Como Machado de Assis estava certo em sua avaliação! Seu olho clínico vislumbrou ali um gênio, desses que superam as barreiras do tempo e se imortalizam no gosto e no coração do povo. A referência à lona, no artigo, é porque as apresentações da peça eram feitas numa espécie de circo. E nos intervalos, Castro Alves declamava seus poemas, em especial esta obra-prima que é "O Livro e a América".

Trata-se da verdadeira epopéia do Novo Mundo, aliada à revolução da cultura, determinada pela imprensa e pela invenção do tipo móvel, que possibilitou a difusão das obras dos grandes mestres da Literatura, dos filósofos, dos cientistas e de toda a sorte de intelectuais. Nada revolucionou mais o mundo do que essa possibilidade de massificação da cultura. Lançou-se um poderoso jato de luz no obscurantismo, tão a gosto dos tiranos.

Nenhuma Revolução foi mais consistente do que a da difusão mundial do livro. Evoluiu vagarosa, mas progressivamente, por quatro séculos. Equivaleu, e foi até mais importante porque a precedeu e determinou, do que a informática, hoje, com a sua rede mundial, a Internet.

"Por uma fatalidade,
dessas que descem do além,
o século que viu Colombo,
viu Guttenberg também...",
constata Castro Alves. É antiquada essa constatação? São velharias esses versos? Falta-lhes modernidade? Só um imbecil responderia que sim.

Aliás, "O Livro e a América" é um poema fundamental na literatura latino-americana. Nenhum outro poeta do hemisfério – e olhem que tivemos dos mais criativos e geniais – sequer se aproximou dessa magistralidade.

"Estatuário de colossos
cansado de outros esboços
disse um dia Jeová:
vai Colombo, abre a cortina
da minha eterna oficina
tira a América de lá..."

"Molhado inda do dilúvio,
qual tritão descomunal,
o Novo Mundo desperta,
no concerto universal.
Dos oceanos em tropa,
um traz-lhe as artes da Europa,
outro as bagas do Ceilão.
E os Andes petrificados,
como braços levantados,
lhe apontam para a amplidão".

"Olhando em torno então brada:
tudo marcha, ó grande Deus,
as cataratas para a terra, as estrelas para os céus".

É ou não é a Epopeia da América, que embora muito mais curta, pode ser comparada aos Lusíadas de Camões? Poderia ser musicada e transformada em hino latino-americano pela Organização dos Estados Americanos, OEA.

"Vós que o templo das idéias
largo abris às multidões,
pro batismo luminoso
das grandes revoluções,
agora que o trem de ferro
acorda o tigre no cerro
e espanta os caboclos nus,
fazei deste rei dos ventos,
ginete dos pensamentos, arauto da grande luz".

Quero encerrar estas reflexões, esta tosca homenagem a esse gênio-menino, com o ápice, o clímax, o momento mais grandioso deste genial poema:

"Ó bendito o que semeia
livros, livros à mancheia
e manda o povo pensar.
E o livro caindo n'alma,
é germe que faz a palma,
é chuva que faz o mar".

Que estas palavras nos sirvam, simultaneamente, de bênção e de missão. Que sejamos semeadores de beleza, de verdade, de cultura e de crença na racionalidade humana, embora tenhamos a certeza de que o tempo não permitirá que façamos a sagrada colheita.





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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