Talento e circunstância

O talento literário aparece em lugares mais estranhos e insuspeitados. As pessoas descobrem-no (claro, quando conseguem detectá-lo) nas mais diversas circunstâncias e lugares. Não há tempo e nem local específicos para que isso ocorra. Refiro-me a talento literário, por tratar-se do objeto do meu interesse, mas a detecção dessa aptidão potencial ocorre da mesma forma em qualquer arte ou ofício. Para isso não há idade e nem lugar. Mas há circunstâncias.

Uns descobrem esse talento precocemente, como foi o caso do austríaco Amadeus Wolfgang Mozart, que aos cinco anos já tocava piano com perfeição técnica que muitos pianistas, digamos quarentões, não conseguiam (e não conseguem) igualar. E mais, compunha peças clássicas que encantavam, encantam e certamente irão encantar tempo afora os amantes da boa música.

Não basta, todavia, alguém descobrir que tem talento para o exercício de alguma atividade (e, no nosso caso, para as letras). É necessário que ele seja aprimorado, exercitado ou, usando uma linguagem da escultura, “burilado”. Caso não se haja assim, a tal aptidão não trará o mínimo resultado. Não desaparecerá, mas também não avançará um único milímetro. Não servirá, portanto, para nada e para ninguém.

Esse preâmbulo, um tanto extenso, vem a propósito de uma escritora brasileira que descobriu sua aptidão em idade adulta. Não se trata, adianto, de nenhuma estudante universitária, ou do ensino médio ou mesmo do básico. De estudo, ela teve acesso, apenas, às primeiras letras. Nossa personagem, posto que não analfabeta, tinha pouca escolaridade. Mas uma força de vontade descomunal e de um poder de raciocínio e observação raríssimo. Tinha tudo para fracassar, não apenas nas letras, mas na vida, em um país tão preconceituoso e injusto, como o nosso.

Vejam só, além de mulher (que ainda não é tratada como merece, ou seja, em rigoroso e estrito pé de igualdade com o homem, como dita a mínima lógica), era negra e pobre. Aliás, paupérrima. Era favelada. Sua profissão? Catadora de papel. Pois bem, as circunstâncias, ditadas pelo acaso, tornaram-na uma das escritoras mais lidas e melhor sucedidas, em termos de vendas, do País. E, sobretudo, famosa. Seu livro de estréia, “Quarto de despejo”, constitui-se em um dos maiores fenômenos editoriais do Brasil. A primeira edição, de dez mil exemplares (que ainda hoje é uma quantidade rara e invejável para nossos padrões) esgotou em uma única semana. Consegui adquirir a obra, mas apenas seis meses depois do lançamento original. E olhem lá! O volume que comprei foi o da já quarta edição.

Destaque-se que o livro foi lançado em 1960. Se hoje, com todos os recursos existentes, já é uma façanha considerável vender mil exemplares, e em dois ou três anos, dado o baixo índice de leitura do brasileiro, imaginem naquele tempo. Mas o feito da nossa escritora, cujo talento foi descoberto tão tardiamente, foi muito maior e mais surpreendente. Seu livro de estréia foi best-seller internacional, traduzido que foi para 13 idiomas.

E quem foi essa figura exemplar (sem dúvida carismática), cuja trajetória literária tem que ser exaltada para motivar muitos desanimados e deprimidos, que não enfrentam sequer 1% das dificuldades dessa talentosa batalhadora? Foi a ex-favelada e ex-catadora de papeis Carolina Maria de Jesus, nascida na desconhecida cidadezinha de Sacramento, em 14 de março de 1914 e que morreu na cidade de São Paulo em 13 de fevereiro de 1977.

Os desinformados podem estar pensando: “Trata-se de uma dessas escritoras de um único livro, que fez tanto sucesso dada a curiosidade que despertou”. Quem estiver imaginando isso, contudo, está totalmente equivocado. Carolina escreveu, e publicou (e vendeu) ao todo cinco livros, e num espaço de tempo de escassos três anos, a saber: “Quarto de despejo” (1960_, “Casa de alvenaria” (1961), “Pedaços da fome” (1963), “Provérbios” )1963) e “Diário de Bitita” (escrito em 1963, mas publicado, postumamente, em 1982).

Pitoresca foi a forma como essa talentosa escritora dói descoberta. Em 1959, o jornalista Audálio Dantas foi encarregado pelo jornal em que trabalhava de escrever matéria sobre a expansão da favela do Canindé, que então não parava de crescer. Ali, soube pelos moradores que em determinado barraco morava (ou se escondia?) uma mulher que gostava de escrever. Apresentado a Carolina, pediu-lhe para ler seus textos, escritos em velhos e amarfanhados cadernos achados no lixo. Ficou boquiaberto com o que leu. Decidiu publicar, em forma de livro, aquelas narrativas, nas quais fez pouquíssimas correções. Deu no que deu.

É fato que, se não fosse Audálio Dantas, as críticas sociais (coerentes e pertinentes) daquela mulher, negra e favelada, como milhões de outras brasileiras, jamais seriam conhecidas no Brasil e nos principais países do mundo. Todavia, se Carolina não tivesse o talento que tinha e se não o exercitasse, colocando no papel, de forma coerente e inteligente, idéias, observações e sentimentos, daí é que não haveria mesmo a obra que ela nos legou. E, enfatizo, ela se constitui não somente de um, mas de cinco livros, Façanha, convenhamos, que muito escritorzinho arrogante, convencido e de nariz empinado jamais conseguirá igualar.





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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