A poesia do cotidiano

A crônica, até tempos relativamente recentes, era considerada, por muitos, como gênero literário menor. Alguns chegavam ao extremo de declarar que sequer se tratava de Literatura, mas mero “apêndice” do jornalismo. Para mim, essa visão é um tanto reducionista, para não dizer canhestra e de uma burrice contundente.

A crônica, na verdade, não apenas é gênero nobre, como fonte, simultaneamente, de cultura e de informação, de emoção e de razão, tudo em linguagem coloquial e franca, via de regra na primeira pessoa.

Trata-se, na verdade, da poesia do cotidiano, já que aborda temas aparentemente triviais, que, todavia, são eternos. Quem a lê com a devida atenção e atenta para seu conteúdo, valoriza-a, ama-a, absorve-a, devora-a e, não raro, elege-a como gênero da sua predileção.

As boas crônicas são atemporais. Nunca perdem a atualidade. Mesmo que lidas cinqüenta anos ou mais depois de escritas, soam como se fossem redigidas na véspera. Qual outro gênero consegue tamanha façanha? Creio que nenhum.

Foi pitoresca a associação da crônica com o jornalismo. E, ao contrário do que muitos pensam, não ocorreu primeiro no Brasil, mas na França. Deu-se há muito tempo, em meados do século XVIII.

Naquela época, óbvio, os jornais não contavam com os recursos atuais de captação, produção e edição de informações. Os repórteres eram poucos, não havia agências de notícias e os editores tinham que fazer das tripas coração para reunir textos suficientes para o preenchimento de uma única edição diária, até para satisfazer os anunciantes e honrar contratos, imaginem a de uma semana, um mês, um ano.

Para suprir essa lacuna, os jornais passaram a convocar escritores, criando colunas e mais colunas de crônicas, tantas quantas eram as páginas a preencher com textos. A intenção, pois, era a de fazer da crônica mero tapa-buraco. Ocorre que o talento dos escritores falou mais alto. Não tardou para que essas colunas, criadas por razões eminentemente práticas, despertassem mais atenção nos leitores do que o próprio noticiário, sempre o mesmo em sua essência, variando, apenas, nos cenários e personagens.

Ainda hoje, com toda a fartura de recursos, é assim. Noticiam-se tragédias e comédias, corrupções e patifarias, assassinatos e injustiças, tudo com visual sofisticado. Por piores que sejam as catástrofes cobertas, estas logo são sucedidas pela seguinte, e por outra, e outra e outra e outra, num rosário de desgraças sem fim. Sou editor e sei do que estou falando.

Muitos assinantes passaram a assinar jornais especialmente para ler crônicas. Os que os compravam nas bancas o faziam pela mesma razão. No século XX, apesar de alguns avanços na tecnologia da informação, os cronistas continuaram sendo úteis.

É preciso ter em conta que em 40% desse período, ou seja, por 40 anos alternados, o País permaneceu sob ditaduras. Primeiro foi a de Getúlio Vargas e, depois, a dos militares. Os jornais, portanto, não podiam noticiar o que alvitrassem. Estavam submetidos à censura.

Ademais, havia imensas dificuldades para selecionar bons redatores. Recorde-se que até poucos anos atrás, as taxas de analfabetismo no Brasil eram não somente vergonhosas, como catastróficas. Antes da criação dos cursos de Jornalismo e da obrigatoriedade do diploma, escritores faziam as vezes de jornalistas, e muito bem.

Hoje essa exigência caiu. E, pelo jeito, as redações ficarão (já estão ficando) repletas de advogados (com todo o respeito a esses profissionais) que cursaram Direito, sem que tivessem vocação para isso. Se forem também escritores, muito que bem. Se não forem...

A importância prática dos cronistas, portanto, cresceu ainda mais nesse longo período de autoritarismo e arbítrio. E, para melhorar as coisas, os escritores se esmeravam em suas crônicas, produzindo preciosas jóias literárias, muitas reunidas em livros e outras tantas, infelizmente, não.

É verdade que de uns anos para cá, perderam espaço. E, coincidência ou não, os jornais se viram (e estão) às voltas com uma crise sem precedentes, com redução sensível e constante no número de assinantes e de vendas em bancas.

Para complicar, a concorrência com outros veículos de informação, muito mais ágeis e dinâmicos, praticamente instantâneos, como o rádio, a televisão e a internet, coloca os barões da mídia impressa contra a parede e exige que haja algum diferencial de qualidade a favor dos jornais, isso se quiserem sobreviver.

Agora pergunto: como pode alguém considerar como produção de “gênero menor” crônicas de um Machado de Assis, Vinícius de Moraes, Mário Quintana, Lourenço Diaféria, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Cecílias Meirelles, Lygia Fagundes Telles, Joel da Silveira, Nelson Rodrigues, Mário Filho, João Ubaldo Ribeiro, Affonso Romano de Sant’Anna e, sobretudo, o “papa” dos cronistas brasileiros, Rubem Braga, entre tantos e tantos e tantos outros? A simples insinuação a respeito já é a suprema heresia. Para dizerem esse tipo de besteira, seria preferível que fossem mudos. Ou nós surdos, para não ouvi-las, não é?





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

O conteúdo veiculado nas colunas é de responsabilidade de seus autores.