De aparências e de enganos

As aparências enganam... Quem nunca ouviu essa expressão? De tão repetida, tornou-se um dos mais recorrentes clichês. Claro que esse dito peca (pecado mortal) pela generalização. Falado (ou escrito) assim parece regra inflexível e universal que, óbvio, não é. As aparências enganam, sim, mas não sempre. Não raro, o que aparenta ser, de fato é. Como distinguir as duas situações? Sei lá! Cada caso é um caso.

E por que, sem essa ou mais aquela, resolvi abordar esse tema nessas nossas reflexões diárias? Porque esses equívocos, esses julgamentos precipitados (ora para inculpar alguém que “pareça” estar agindo errado, ora para inocentar quem na verdade é culpado) são o “alimento” por excelência da literatura, notadamente a ficcional. Fornecem farto material para romances, contos e novelas, mesmo que à primeira vista não o percebamos. No meu caso, boa parte das histórias que escrevi baseia-se em pessoas e fatos reais.

Claro que não as redigi de forma literal, tal e qual aconteceram. Se as redigisse assim, estaria escrevendo reportagens e não contos. Essas ocorrências reais são apenas a ponta do novelo, o fio da meada. São o “start”, o ponto de partida para a elaboração dos enredos. O miolo, a história em si, fica por conta da imaginação de quem escreve, mas sempre tendo em vista a verossimilhança, embora isto seja mais complicado do que parece, já que, via de regra, a realidade, nua e crua, é mais incrível, mais inacreditável do que a mais delirante ficção.

Fosse transformar em contos todos os casos que conheço – parte dos quais vivi e parte que testemunhei – precisaria viver pelo menos três vezes mais do que já vivi e escrever sem parar nesse tempo todo, por no mínimo oito horas por dia. Por isso, seleciono aqueles que considero “melhores” (embora não saiba explicar bem o critério que adoto para esse tipo de classificação). Quem já leu meus contos, certamente identificou situações em que as aparências indicavam uma coisa e a realidade era outra, diametralmente oposta.

Escrevi, não faz muito, uma história assim, que se passa num Carnaval. Acreditem ou não, ela foi baseada num fato verídico. Claro que mudei os personagens de maneira tal que ao ler o enredo, nenhum deles conseguiu se identificar. Todos os envolvidos leram o tal conto, aparentemente gostaram e não se viram descritos nele. Mas todos eles estavam presentes ali, de corpo e alma, no enredo.

Para não deixar você, paciente leitor, no ar, vou resumir (na verdade fazer o resumo do resumo) esse conto. Havia no bairro de determinada cidade (que foi a primeira coisa que modifiquei) dois casais muito amigos. Num deles, a mulher era dessas pessoas alegres, descontraídas e brincalhonas, das que não têm papas na língua e dizem coisas não raro inconvenientes, que afetam e mancham sua reputação, mesmo que não deva coisa alguma. Gostava de bailes, em especial os de Carnaval e era amante inveterada de baladas. O marido era o outro lado da moeda. Tímido, de fala mansa e gestos gentis, era um sujeito caseiro, que não gostava de confusões e que amava sua casa, seus gatos, suas plantas e seus livros.

O outro casal era o oposto do primeiro. Ela era carola convicta, dessas de assistir até a três missas no mesmo dia, além das rezas que fazia em casa. Ele era machista, autoritário, dos tais que, em casa, fazem prevalecer, sempre, a própria vontade e cuja palavra é lei. Enquanto a mulher dedicava-se às tarefas domésticas e não tinha vida social, o marido freqüentava bares, boates e estádios de futebol e, vez ou outra, a zona do meretrício. As únicas saídas da esposa eram a ida à igreja e, na época de Carnaval, o retiro espiritual que fazia numa chácara da paróquia, local para onde era conduzida pelo tal machão que, além de tudo, era patologicamente ciumento. Depois de a deixar lá, ele partia, invariavelmente, para a esbórnia.

Agora pergunto: qual das duas mulheres traía o marido? A que gostava de se esbaldar em festas e nas baladas ou a caseira, a carola, a que se submetia sem um pio às imposições do marido autoritário? No bairro todos achavam que fosse a primeira. Qual não foi, porém, a surpresa geral quando se descobriu que a verdadeira “messalina” era a segunda, amante de um seminarista, vejam só. Na vida real, o marido machão separou-se da esposa infiel, não antes de lhe aplicar homérica surra. No conto, o escritor foi menos cruel (ou mais cínico) e fez com que o traído fizesse de conta que nada aconteceu e tocasse a vida adiante. Claro que o enredo não é tão simples. É repleto de nuances e de peripécias e o desfecho é revelado ao leitor apenas no derradeiro parágrafo, e de propósito, para chocá-lo, pela surpresa. Esse é caso típico de como as aparências enganam.

Outro caso que transcrevi e transformei em conto é o de um amigo íntimo, no qual confio sem restrições. A ele, mostrei a história, que ele gostou e que exige a todo momento que eu a publique. Oportunamente o farei. Pois bem, esse sujeito boníssimo, prestativo e amável, uma “moça” em seu comportamento (e aí não vai nenhuma conotação pejorativa pondo em dúvida sua masculinidade, mas uma forma figurada de caracterizar sua gentileza), é tremendamente mal encarado. Quem não o conheça e costume fazer julgamento precipitado vai logo considerando que se trata de um malfeitor. Foge da sua presença. Foram inúmeras as ocasiões que lhe disseram, na lata, que tinha “cara de bandido”. E tem mesmo. O que fazer? A natureza o fez assim!

Um dia ocorreu um assalto numa residência do bairro. Por uma dessas casualidades, ou azares, meu amigo estava perambulando por perto, quando uma viatura da polícia rondava pelo quarteirão à procura do assaltante. O que vocês acham que aconteceu? Isso mesmo, o pobre do mal encarado foi imediatamente detido e levado para a delegacia, mesmo sem estar de posse de nenhum dos objetos roubados na residência e que, ademais, se fosse ele o ladrão, não teria tempo para se desfazer. Foi uma luta para que o delegado o soltasse. Só conseguiu ver-se livre da enrascada, na qual era rigorosamente inocente, porque lhe consegui um dos melhores advogados da cidade. Mesmo assim, quando deixava a delegacia, o delegado e os investigadores olharam-no com extrema desconfiança, como que convictos da sua culpa. Por que? Porque “tinha cara de bandido”. Baita sacanagem com um sujeito honestíssimo, gentil, trabalhador e cumpridor dos seus deveres. Ah, como as aparências enganam! Mas... nem sempre, é verdade...





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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