Jogo da vida

O poeta italiano, Gabriele D’Annunzio, foi um sujeito controvertido. Para uns, foi um herói, um revolucionário, um idealista, além de um artista sensível e criativo. Para outros, foi uma pessoa amalucada, dessas que hoje costumamos chamar de “porras loucas”, que vivem aprontando mil peripécias e não sossegam em lugar algum. Questão de opinião. Da minha parte, embora admire algumas de suas poesias (e deteste outras), fico com a segunda opinião.

Além de poeta, D’Annunzio foi músico, bruxo (dizem que acreditava e praticava a magia negra). Para muitos, foi “gênio”, já para outros, não passava de um sujeito grosseiro e mal-educado, além de incorrigível mulherengo e aventureiro sem-limites. Para que o leitor tenha uma idéia das suas “peripécias”, basta citar apenas uma, a mais maluca de todas, que foi a conquista de uma cidade.

Não me refiro, neste caso, à conquista da simpatia e admiração dos cidadãos ou de prestígio e reverência por causa de seus dotes artísticos. Não, não foi nada isso. Pelo contrário, aliás. D’Annunzio conquistou, sim, uma cidade, mas militarmente, a poder de armas, à frente de um pequeno exército informal (de “porras loucas” como ele) conhecido como “Arditi”.

O fato se deu na Primeira Guerra Mundial. Pouca gente, fora da Itália, conhece essa história e os que a conhecem preferem ignorar essa “façanha”. A cidade conquistada foi Fiume, da então Iugoslávia, antes que essa federação formada artificialmente se esfacelasse, no final dos anos 90, num dantesco banho de sangue que chocou o mundo. Concluída a conquista, D’Annunzio, achando que havia feito algo de extremamente meritório, ofereceu, incontinenti, a sua presa ao governo italiano.

O que o leitor acha que aconteceu? Que o poeta foi condecorado como herói nacional e ganhou, até, estátua em praça pública? Quem pensou assim enganou-se. O que D’Annunzio armou foi um enorme incidente diplomático e nada mais. Foi censurado acerbamente e o primeiro-ministro italiano chegou a chamá-lo, entre outras tantas coisas impublicáveis, de “idiota”. E estava errado? Cada um conclua por si.

Trago Gabriele D’Annunzio à baila, porém, não para comentar suas trapalhadas e nem para avaliar a sua poesia (para muitos, decadente, para mim, de um bom nível). Interessa-me, isto sim, uma declaração que ele fez em um de seus textos, que me chamou, particularmente, a atenção e suscitou-me algumas reflexões. O controvertido poeta escreveu: “Quem disse que a vida é um sonho? A vida é um jogo”.

O leitor concorda com ele? Eu não! Acho que essa foi mais uma das tantas bobagens que disse, escreveu ou que lhe são atribuídas. Raciocinemos. Somos condicionados, desde crianças, a sermos competitivos, é fato, como se a vida, na verdade, fosse um jogo. Insisto, não é! Não raro, testamos nossos limites e tentamos ir além deles, para superar supostos competidores.

Colocamos à nossa frente objetivos que, quase sempre, são inalcançáveis, e nos frustramos quando não os atingimos. Queremos ser mais, ter mais, fazer mais do que os outros, quando a vida não é isso. Precisamos é conhecer e desenvolver nossas capacidades e viver, sem nos preocuparmos se o vizinho conquistou ou não mais coisas do que nós.

Para rebater a afirmação de D’Annunzio, recorro a outro poeta, a Mário Quintana, que observou, em uma crônica publicada no jornal “Gazeta do Povo” de Porto Alegre: “A vida não é um jogo onde só quem testa seus limites é que leva o prêmio. Não sejamos vítimas ingênuas desta tal competitividade. Se a meta está alta demais, reduza-a. Se você não está de acordo com as regras, demita-se”.

Agindo assim, pode ser que não sejamos os “campeões” que pretendemos ser. Mas alcançaremos um prêmio maior e muito mais cobiçado, sem preço: seremos felizes! Entre os dois poetas, o italiano fanfarrão e amalucado, e o gaúcho, sábio e sereno, claro que fico com o segundo.

Não estamos num jogo, mas imersos em um insondável mistério. Nossa sobrevivência nem mesmo depende de nós, mas de forças poderosíssimas, alheias a nós, contra as quais nada podemos fazer. Nossos dias e nossas noites, nosso sono e nosso despertar diário estão, somente, nas mãos de Deus (ou chamem como quiserem esse poder sobrenatural que controla o micro e o macrocosmo e impõe leis naturais ao universo. Da minha parte, prefiro a denominação convencional).

Piedosamente, não sabemos o que nos irá acontecer no segundo seguinte, quanto mais nos anos vindouros. Se forem grandes alegrias e a realização dos nossos sonhos, a surpresa multiplicará esse bem. Se forem tragédias, desastres ou até a morte, é melhor, mesmo, que sequer saibamos deles, para não sofrermos duplamente. Daí eu ter afirmado que esse não-conhecimento do minuto seguinte é um ato de piedade para conosco.

Sonho ter um dia um magnífico e definitivo despertar, mas num mundo infinitamente melhor e, sobretudo, imortal. É exagero meu? Pode ser! É verdade que não tenho a mínima indicação de que isso seja possível. Mas os que o julgam mera pretensão também não podem demonstrar, com fatos, que isso seja impossível. Prefiro ficar com o meu sonho!

Para encerrar, já que tratei de poetas, recorro a um terceiro, este bastante saudoso, que em vida foi meu amigo, e que sobreviverá em minha memória enquanto eu viver. Trata-se de Mauro Sampaio, que escreveu a respeito, nestes versos do seu poema “Amanhecer”:

“Os dias e as noites são teus, Senhor.
Teu é o meu sono e o amanhecer.
Mas penso agora em outra noite e outro dia,
Amalgamados
em um único e admirável despertar.
E imagino minha confusão deslumbrante e definitiva!”.

Por essa esperança, sim, vale a pena viver, não é mesmo? Jogo? Quem disse que a vida é um jogo? Sonho, talvez, não seja, mas desafio até que pode ser!





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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