Maior que a vida

“A arte é sempre maior que a vida”. Meditei bastante sobre essa declaração do diretor cinematográfico norte-americano, Paul Schrader, em uma entrevista à imprensa, há já alguns anos, se não me falha a memória (e não raro esta me trai) na década de 70 do século XX. Parece que foi ontem que li isso, todavia... já faz tanto tempo! A princípio, sequer dei muita importância ao que o cineasta afirmou, que foi apenas uma das tantas coisas que disse, notadamente sobre sua atividade específica, o cinema. Não sei explicar bem porque, no entanto, o fato é que esse dito em particular ficou “revirando” em meu cérebro, sem querer se apagar, como tantas coisas que leio, vejo ou ouço diariamente, e que acabo esquecendo (muitas das quais seria melhor que jamais esquecesse) que se apagam.

“Como a arte pode ser maior do que a vida se é fruto desta, se nasce exclusivamente (lógico) porque o artista que a elaborou um dia nasceu e se, para produzir sua obra, se alimentou dela, de suas nuances, dramas, comédias e tragédias etc.?”, questionei diversas vezes, disposto a esquecer essa declaração, por sua aparente inconsistência, senão incoerência. Mas não esqueci. Essas poucas palavras tornaram-se recorrentes, volta e meia voltavam-me à memória, como a exigir entendimento ou, até mesmo, explicação.

No afã de confirmar essa tese ou de comprovar sua falácia (na verdade, a tentativa, pelo menos a inicial, era esta), escrevi, muito, intensa e furiosamente, a propósito do tema. Redigi uma série de ensaios, gênero que mais se presta a esse tipo de especulação. E estes foram tantos, que geraram todo um livro, “Arte que resgata” (que talvez não consiga publicar jamais, não pelo menos em vida) e ainda restaram textos suficientes para um segundo volume. A conclusão a que cheguei foi a de que o cineasta tinha razão. Talvez (se não provavelmente) sua intenção sequer fosse a de estabelecer uma tese. É provável que se tratasse de mera frase de efeito, sem nada a ver com a entrevista.

De fato, a arte é maior do que a vida. Não de toda ela, talvez, mas maior do que a de quem a produz. Afinal, o artista, como todo ser vivo, é efêmero e passageiro. Está sempre caminhando em uma corda-bamba, suspensa sobre profundo abismo, sem rede de proteção. Quando menos espera (e ninguém espera), zás, despenca e se vai. Todavia sua obra, se autêntica e valiosa, lhe sobrevive e, mesmo que tenha permanecido por anos, quiçá séculos ou até mesmo milênios ignorada, lá um belo dia é descoberta por alguém, num feliz acaso, que a resgata e a traz à luz do conhecimento público.

Refiro-me, evidentemente, a obras consistentes, originais, espontâneas e sinceras. Àquela instintiva, natural e selvagem produzida com paixão, com o artista deitando “chispas pelos olhos”. Essa expressão artística é a única forma de sermos autênticos. Não existe outra. É nossa carta de alforria. É a absoluta e irrestrita liberdade. Na vida em sociedade nunca somos totalmente livres, embora não sintamos (não a todo o momento) ou nem pensemos nisso, os grilhões dos costumes, tradições, leis e expectativas a nosso respeito.

Convenhamos, ninguém é forçado a ser artista: músico, escritor, pintor, escultor, poeta... É escolha pessoal e intransferível, questão de vocação ou de talento. Ou se é ou não se é artista, não existe meio-termo. Sei que já escrevi a esse propósito, e inúmeras vezes, talvez com estas mesmas palavras, mas faço questão de reiterar. Fazer arte é o modo de que cada pessoa dispõe para ser livre, para impor a personalidade, para deixar a marca no mundo. Uns, de fato, deixam. Outros tantos traem essa vocação e partem para outros caminhos, menos incertos, pedregosos e espinhosos, posto que menos nobres.

A aceitação ou não do que o artista produzir vai depender de critérios subjetivos de apreciação e avaliação dos destinatários. Mas a arte não comporta interferências e nem censuras. A liberdade de escolha do artista tem que ser respeitada e irrestrita. Só a ele cabe decidir sobre o que, quando, como e onde criar. E sem dar explicações a ninguém sobre o que criou e com qual objetivo. Compete ao “apreciador”, ao “consumidor” da arte fazer a própria interpretação.

Outro cineasta, Stanley Kubrick, declarou, em entrevista concedida em 1962, há, portanto, 50 anos: “Um artista não dá explicações. Que diriam todos se Leonardo da Vinci escrevesse sob a Gioconda uma legenda do tipo – Ela está sorrindo porque recebeu excelentes notícias da família?” Sim, o que diriam? Certamente receberiam essas explicações com deboche, o que é o mais provável.

As artes, qualquer delas, estão entre as atividades mais nobres que existem. Mostram a vida não somente como ela é, mas, principalmente, como poderia e deveria ser (e que, de fato, poderá se concretizar, caso atuemos positivamente para torná-la ideal). Nem todos, é verdade, têm habilidades artísticas. Mas ninguém é despido de sensibilidade a ponto de não apreciar um belo poema, um quadro pintado com maestria, uma sinfonia harmoniosa e marcante ou uma escultura executada com perícia.

O artista valoriza, sobretudo, a beleza que nos rodeia e que dá encanto à vida. Ademais, como lembra o escritor Bertold Brecht, “todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver”. E esta é fundamental. Ou seja, saber como andar nessa corda-bamba sem despencar de cara no abismo é o que se pode chamar de “sabedoria”. Sobretudo, fazer essa peripécia de equilíbrio com transcendência, grandeza e beleza. É por isso que a arte, em sentido genérico, é maior, muito maior do que a vida, concordemos ou não. Porquanto é, no final das contas, tentativa (na maioria das vezes bem-sucedida) de sua interpretação, feita pelo artista.

Tudo o que o cerca, animal, vegetal ou mineral não importa, é tema potencial para suas criações, temperado, claro, pelo seu talento, experiência e modos de enxergar as coisas. Deleito-me, e aprendo muito mais sobre mim e o mundo nas obras dos grandes criadores, do que na filosofia, nas ciências e em outras tantas disciplinas criadas pelo e para o homem. A natureza, se bem observada, é, por si só, inigualável obra de arte. Ás vezes é tétrica (e, para o artista, há beleza até na extrema feiúra), às vezes sublime, dependendo do que se observa.

Mais do que agradar os sentidos, o principal papel do artista é induzir o observador à reflexão e à análise do que é e onde está. Sê-lo, portanto, é enxergar o outro lado das coisas e se deleitar com ele. É agir, por exemplo, como o poeta Mauro Sampaio sugere em seu poema “Rosa”: “Amar a rosa, não pelo perfume,/mas pela arrogância das pétalas”. Porquanto, como declarou o ilustre psicanalista Carl Gustav Jung: “O artista é um homem coletivo que exprime a alma inconsciente e ativa da humanidade”.





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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