Várias realidades

Os que apregoam que são “realistas” na maioria das vezes sequer sabem definir o que seja realidade e muito menos fazer distinção entre esta e sonhos e idealizações. Trata-se de mera máscara para disfarçar o pessimismo com que encaram a vida. E o pessimista, mesmo que não se dê conta, é um doente. Encara tudo e todos sob um prisma negativo, sofre sem necessidade e parece se comprazer com o sofrimento.

O que é o real? O nascimento? Alguém é capaz de determinar por que, entre tantos espermatozóides potencialmente geradores de vida, justamente o que lhe originou foi o que fecundou um óvulo específico?

“Ah, a realidade está na morte”, dirão alguns. Por que, então, algumas pessoas morrem, às vezes sem completar um reles dia de vida (ou nem mesmo uma hora sequer), e outras, com doenças incuráveis, chegam a sobreviver por cem anos? Não há “uma realidade”, mas “múltiplas realidades”, dependendo de quem seja o observador..

Há um trecho do romance “Guerra e Paz”, de Leon Tolstoi, ao qual pouca gente atentou, e que serve a caráter para ilustrar a minha tese. Analisemo-lo por partes. O romancista russo escreve: “Uma abelha pousada em uma flor picou uma criança. E a criança tem medo das abelhas e diz que o objetivo delas é picar os homens”. Não lhe passa, claro, pela cabeça que esse é, certamente, o inseto mais útil ao homem que há em toda a natureza. Muito menos sua incrível “organização social”, de nos causar pasmo e inveja. A criança julga a “realidade” pela experiência, única, que teve em relação a esse bichinho: a da ferroada.

Tolstoi prossegue: “O poeta admira a abelha que trabalha no cálice da flor e diz que o objetivo da abelha é recolher o aroma das flores”. Para ele, é. Ninguém o convencerá do contrário. Comprometido com a beleza, o poeta faz dela a sua realidade. Não se dá conta da agressividade do inseto (pois não foi picado por ele) e nem da sua utilidade, já que o mundo em que vive é outro, com valores diversos dos das pessoas tidas como práticas..

E o escritor russo acrescenta: “Um apicultor, notando que a abelha recolhe o pólen e o néctar e os leva para a sua colméia, diz que o objetivo da abelha é recolher o mel”. Afinal, essa é a sua atividade. Aprendeu a direcionar o trabalho instintivo do inseto em seu próprio benefício. Mas não há consenso nem mesmo entre essa categoria, conforme Tolstoi destaca: “Outro apicultor, tendo estudado de mais perto a vida do enxame, diz que a abelha recolhe o pólen e o néctar para alimentar a larva e criar a rainha, que o seu objetivo é a continuação da espécie”.

Claro que não fez nenhuma descoberta bombástica e transcendental. Limitou-se a constatar o óbvio. Todo ser vivente, animal ou vegetal, objetiva, antes e acima de tudo, por instinto, a sua continuidade (entre os quais, claro, inclui-se o homem). Tolstoi, porém, não pára por aí. Afirma: “O botânico nota que ao passar com o pólen da flor dióica para a flor fêmea, a abelha fecunda-a, e vê nisso seu objetivo”. E não está errado, evidentemente.

Mas esta não é a única finalidade da abelha e sequer a principal. Para o pesquisador, porém, é. Como no caso do apicultor, contudo, não há consenso também entre os especialistas desta área. É o que Tolstoi afirma: “Um outro observando a migração das plantas, verifica que a abelha contribui para ela, e pode dizer que tal é o objetivo da abelha”.

Instigante, no entanto, é a conclusão do escritor, com a qual concordo plenamente (daí tomar este trecho do seu célebre romance para ilustrar estas considerações). Tolstoi observa: “Mas o fim último da abelha não se reduz ao primeiro, nem ao segundo, nem ao terceiro dos objetivos que o espírito humano é capaz de descobrir. Quanto mais o espírito humano se eleva na descoberta desses objetivos, mais evidente se torna que o fim último lhe é inacessível”.

Nossos sentidos, notadamente o da visão, nos iludem e, com muita freqüência, nos induzem ao erro. Nem tudo o que vemos é, de fato, o que aparenta. E, não raro, cometemos enormes injustiças ao julgar uma pessoa apenas pela aparência, sem atentar para a sua essência. Se não me falha a memória, foi Saint’Éxupery que afirmou que “só se vê bem com o coração”. Não com o órgão físico em si, é evidente, mas com sentimento, com compreensão e com interesse.

O essencial para a nossa vida – como a fé, a esperança, a bondade e a solidariedade entre outros – é invisível aos olhos. Só identificamos esses valores, que nos caracterizam como pessoas inteligentes, com o nobre instrumento da razão. A mesma realidade é vista de formas diferentes pelas pessoas, dependendo da sua formação, curiosidade, imaginação e criatividade. Constitui-se, portanto, em “várias realidades”. Multiplica-se em progressão geométrica.

Umas pessoas dão asas à fantasia, vivem nas nuvens e raramente, ou quase nunca têm os pés no chão. Outras, não sabem enxergar além das aparências, do concreto, do cimento e do asfalto e não usufruem do delicioso dom de sonhar. O ideal é a mistura, bem dosada, do real e do ideal.

Idel Becker escreveu: “Duas pessoas olham para fora através da mesma janela: uma vê o pântano e a outra as estrelas”. Uma terceira, porém, a mais sábia, posto que criativa, tem uma visão mais ampla: vislumbra, simultaneamente, tanto o pântano, de águas podres e estagnadas, quanto as estrelas que brilham além, no firmamento. Como, pois, falar de “realidade” e não de “realidades”?!





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

O conteúdo veiculado nas colunas é de responsabilidade de seus autores.