Uma janela para o mar

O intelectual que leva uma vida intensa, em termos de cultura, que desde tenra idade tem estreito contato com livros, com letras e com todos os tipos de arte, mesmo que não admita (e a maioria não admite), tem um sonho que é recorrente: escrever suas memórias, quando achar que viveu bastante para tê-las. Comigo, obviamente, não é diferente. Há já um bom tempo que tenho esse projeto. Até dei alguns passos concretos nesse sentido. Criei, no meu computador, uma pasta própria, chamada “Memórias”, abarrotada de textos dessa natureza.

“Não é suficiente?”, perguntam os amigos. “E os mais de dez mil artigos, crônicas, ensaios, poesias e contos que você já produziu? Não esgotaram suas lembranças?”, voltam, amiúde, à carga. Infelizmente, ainda não. Ainda tenho muito a escrever, sobre as experiências pessoais e intelectuais que vivi, sobre os livros maravilhosos que li e que contribuíram decisivamente para que eu fosse o que sou, sobre os artistas, em especial escritores, com os quais tive o privilégio de conviver e vai por aí afora.

Devo ressaltar que o objetivo dessas memórias, o público-alvo, não seria especificamente o leitor que me acompanha há tantos anos na imprensa (e de uns cinco anos para cá, na internet) e nem aquele que eventualmente poderia vir a conquistar. Esse exercício memorialístico seria voltado, basicamente, à família: aos meus quatro filhos, ao neto que já tenho e aos que eventualmente vier a ter. Se aparecer algum editor interessado em publicar essas reflexões, tudo bem. Faço, com prazer, essa concessão (isto, óbvio, se as memórias, de fato, vierem a ser escritas). Caso contrário... que essa seja a maior herança que eu possa deixar à minha prole e à sua respectiva descendência.

Mas antes, claro, elas têm que ser escritas. E aí que são elas! Documentação que as fundamentem eu tenho, e muita. E toda ela devidamente organizada por assunto. Sou tarado por organização! “Então, o que falta para você empreender essa empreitada?”, voltará à carga o impaciente leitor. Falta tempo! Mais do que isso, falta tranqüilidade. Por isso, tenho um sonho recorrente, que duvido que vá conseguir concretizar, mas que nem por isso consigo deixar de lado. É o de terminar os meus dias em uma casinha simples, toda branca, mas com todos os recursos da vida moderna, como eletricidade e internet (sem telefone, porém), em alguma praia perdida deste imenso Brasil (talvez no litoral Norte paulista, na região de Ubatuba, mais perto aqui de Campinas, onde moro, quem sabe) e com a janela do meu gabinete de trabalho de frente para o mar.

O que me impede de concretizar esse sonho? O principal, o indispensável, o fundamental nos tempos que correm (e creio que em todos os outros): money, money, money, o deus da vida moderna. E por que entendo que só num cenário, como esse, conseguirei levar a cabo minha empreitada? Por uma série de razões. A principal delas é a de não ser interrompido no momento em que estiver redigindo, por nenhuma razão no mundo. Atualmente, interrupções são o que mais acontece no meu dia-a-dia.

Meu gabinete de trabalho até que é um mundinho isolado, restrito, quase à prova de intrusos. Mas apenas “quase”. Por exemplo, quando inicio a jornada diária, minha primeira tarefa, invariavelmente, é a de conferir a correspondência eletrônica. E não há um único dia, nem em domingos ou feriados, em que não haja e-mail de algum jornal ou site da internet me cobrando textos. Isso é mau? Claro que não! Como não sei dizer “não” a ninguém, lá vou eu redigir mais uma crônica, mais um artigo, mais um conto, mais um ensaio, ou seja lá o que for! E as memórias...

“Bem”, diria novamente o leitor que acha ter solução para tudo, “você não pode ignorar os e-mails?”. De fato, posso. Mas não o telefone. E este, geralmente, toca nos momentos mais inoportunos, no meio de uma frase que considero brilhante (provavelmente não é, mas deixa para lá), de uma idéia que surge de repente e que se não for logo registrada se apaga da mente e (de novo) vai por aí afora.

“Ora, você pode deixar o telefone fixo fora do gancho e o celular somente na caixa postal”, voltará à carga o insistente leitor, que busque me encurralar e me deixar sem argumento. Também posso! Mas não tenho como impedir que a empregada faça limpeza em meu gabinete de trabalho, arrume os livros do jeito que ela entende que seja “ordem” (ela não sabe que a minha bagunça é organizada) e me deixe maluco, na seqüência, com a barulheira infernal do aspirador de pó e da enceradeira.

E assim vai. De interrupção em interrupção, os dias vão passando, as semanas, os meses, os anos e nada das memórias serem despejadas na telinha do computador. Essa história de casinha em uma praia quase deserta é um sonho recorrente, que acalento não de agora, mas de há muitos anos. Contudo...para a minha infelicidade, fica cada vez mais difícil de concretizar.

Para complicar as coisas, esse desejo tão profundo voltou, com força redobrada, ao consciente, dia desses. Foi quando minha filha mais velha, a Tatiana, em viagem pelo Nordeste com meu genro Horácio e o meu neto Pedro (meu xará), passou-me um e-mail (sempre o e-mail!) de uma remota e selvagem praia de Alagoas, dizendo que, ao chegar nesse lugar paradisíaco, se lembrou das tantas e tantas vezes que mencionei esse sonho em nossas conversas nos almoços e jantares especiais de família (aniversários, Dia das Mães, Dia dos Pais, Páscoa, Natal, Ano Novo etc.). Para quê ela foi lembrar?! De sonho, o desejo em questão transformou-se, desde então, em obsessão (e, claro, em maiúscula frustração).

Para assanhar ainda mais, ouvindo hoje um CD que um amigo me deu, da Elza Soares, que sucesso da cantora o leitor acha que está tocando agora, quando traço estas descompromissadas linhas?! Coincidência, ou não, é “Casinha da Marambaia”, composição do Henricão e Rubens Campos, cuja letra diz:

“Eu tenho uma casinha lá na Marambaia
fica na beira da praia, só vendo que beleza.
Tem uma trepadeira que na primavera
fica toda florescida de brinco de princesa...”.

E vai por aí afora (mais uma vez). A letra só falta dizer, para ser a expressão exata do meu sonho, que a casinha deve, necessariamente, ter uma janela para o mar.





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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