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Pelo calor, fui levado à biblioteca e ao verso de Púchkin, fundador da moderna literatura russa,
“Dom inútil, dom fortuito,
por que a vida me foi dada?
E o destino, com que intuito
a condena a um: o nada?”


Esse verso foi produto de quem não pôde, nunca, dizer que da sua vida havia esse nada, afinal o poeta viveu poucos e intensos 38 anos, falecendo em 1837 por ferimentos fruto de um duelo - algo comum na época -, motivado por ciúmes e intrigas. Ele, que havia sido exilado da sua Rússia por culpa de seus versos e recuperado pelo czar Alexandre I, com o compromisso de ser censurado somente e unicamente pelo seu soberano.

E o que Púchkin e sua louca vida tem a ver com o nosso verão sulista? Nada e ao mesmo tempo tudo. Ao nada, não considerarei muito, pois me parece óbvio. Ao tudo, digo que a vida da época, numa região do globo que a natureza acontece em extremos, como a nossa, nas primeiras décadas do século XIX, era dotada dessa permanente tensão que se nos avizinha hoje.

Atentados aos reis e czares eram comuns, fuzilamentos e guerras estranhas fruto de alianças militares volúveis, aconteciam frequentes, doenças, como o cólera, espocavam pela Europa, reduzindo a população das cidades e mudando o curso da história a todo o instante. E hoje? E Paris? E Charlie Hebdo? E a Nigéria e seus mais de dois mil mortos e poucos comentários? E o ebola? E a febre chicungunha? E os aviões que desaparecem sem deixar vestígio de duzentas e sessenta pessoas? E nossos ônibus interurbanos que matam às mancheias? Como se para virar manchete não bastasse o horrendo acidente, mas sim a morte de meia-dúzia, e até dúzias inteiras ou mais, de inocentes e desavisados passageiros? Quem é o aliado? Quem é o inimigo?

Na Rússia de Aleksandr Serguêievitch Púchkin (seu bisavô Abraão Aníbal, era um etíope que virou general russo, também o primeiro intelectual negro europeu e tema de uma obra inacabada de seu bisneto, chamada O negro de Pedro, o Grande), o verão é também asfixiante. Lá, o sol não se esconde de todo até que o outono se instale. Os cidadãos, que por azar não estiverem habituados, possivelmente vivem de noites mal dormidas e dias modorrentos com a sensação térmica próximo ao insuportável.

Não estranho, pois, poemas como esse "Dom Inútil", era tanto, mas tanto naqueles tempos, que a inutilidade da vida, face às catástrofes e às desilusões de um tempo de incertezas, não seria jamais surpresa se apresentada em sólida poesia. Nesse início do século XXI, de redes sociais e estranhas coisas virtuais, em contrapartida, talvez não haja espaço para se falar em nada e inutilidade, outros já falaram à exaustão. Mas sobra terreno para reclamarmos, cada um, do tempo, do calor, da qualidade da telefonia, dos salários, das segunda-feiras e dessas coisas que nada entendemos mundo afora.





Escritor, poeta e cronista, Paulo Tedesco contribuiu por vários anos para diversos jornais brasileiros na Flórida-EUA. Conheça o Blog do autor - clique aqui!

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