Santo remédio

O conceito de trabalho é muito vasto e às vezes ambíguo e, dependendo do aspecto pelo qual é encarado, pode ser considerado um bem, e mais do que isso, uma necessidade das pessoas, ou um “castigo”, forma com que é encarado por muita gente. Antes que me contestem, não estou fazendo nenhuma apologia da omissão e da preguiça, longe disso. O que quero é lhes propor é um tema para madura reflexão.

Quando o trabalho pode ser encarado como algo penoso e desgastante, que não nos traz nenhuma vantagem, senão a sobrevivência física, miserável e sem perspectiva? Quando é obrigatório, como era o dos escravos, quer da remota antiguidade, quer dos tempos mais atuais (não se esqueçam que a escravidão, no Brasil, terminou, apenas, em 1888, há apenas 127 anos, portanto), fazendo fortunas dos escravizadores que, sob qualquer aspecto que se olhe, é de uma perversidade inominável.

Quem se valeu do trabalho alheio para enriquecer é o ladrão dos ladrões. Roubou não apenas a força física de alguém, como, e principalmente, seu bem mais precioso: sua liberdade. Considero isso, pois, a vileza das vilezas, o crime dos crimes, para o qual não deveria haver perdão. Mas houve.

Milhões de seres humanos foram selvagemente caçados como feras em suas aldeias, notadamente na Ãfrica (refiro-me à escravidão recente), transportados como cargas em navios insalubres, amontoados pior do que bichos, boa parte morria antes de chegar ao destino, e era vendida como objeto, para quem queria ter riquezas, mas não queria trabalhar. E isso era considerado normal!

Milhões de vidas eram sacrificadas nos canaviais e engenhos da América Central e das ilhas do Caribe, e também no Brasil, o último país do mundo a abolir a escravidão. Outro tanto foi sacrificado em algodoais e minas de carvão dos Estados Unidos e vai por aí afora. As Américas foram construídas à custa de sangue, muito sangue.

Outro trabalho, que pode ser considerado castigo, é o exercido pela maioria dos trabalhadores em todo o mundo, não raro opressivo, monótono ou perigoso e, sobretudo, remunerado muito aquém do que vale. Sempre considerei isso como escravidão remunerada. E isso é considerado normal! Anormal é quem se opõe a esse procedimento e é, invariavelmente, tachado de subversivo, encrenqueiro, “criminoso” e outras tantas designações (escolham a de sua preferência).

São vidas que estão em jogo e, como todos sabemos, esta nós só temos uma, que não comporta, pois, reprises. “As coisas já foram piores neste aspecto”, dirão vocês. Concordo. Tanto que mencionei a indecência e crueldade da escravidão.

“Então você se opõe ao trabalho?”, perguntarão os que gostam de distorcer palavras para defender o indefensável. “Sem ele, o que seria do mundo? Não haverá cidades, países, economias, civilização, nada. Ainda estaríamos nas cavernas, como bichos, caçando com as próprias mãos, ou sendo caçados por predadores”, acrescentariam à guisa de explicação. Concordo. Não defendo, de forma alguma, a inércia, a preguiça e muito menos a omissão.

O que defendo é a dignidade do trabalho e, sobretudo, do trabalhador. É a remuneração justa e condições decentes de vida, coisa que não vejo em lugar algum do mundo. E sequer preciso citar exemplos. Olhem ao seu redor, mas com olhar aguçado e crítico e concluam se o que existe sequer se aproxima remotamente do ideal.

Anatole France, o premiadíssimo Prêmio Nobel de Literatura francês, escreveu sobre o tema. Defendeu o trabalho, sim, e apontou, sobretudo, sua necessidade, não apenas individual, como coletiva. E eu não seria maluco e nem burro de contestá-lo.

Constatou, num memorável texto: “O trabalho é bom para o homem. Distrai-o da própria vida, desvia-o da visão assustadora de si mesmo; impede-o de olhar esse outro que é ele e que lhe torna a solidão horrível. É um santo remédio para a ética e a estética. O trabalho tem mais isso de excelente: distrai a nossa vaidade, engana a nossa falta de poder e faz-nos sentir a esperança de um bom evento”.

Será, porém, que Anatole France (socialista ferrenho) defendia o status quo, tanto do seu tempo, quanto do nosso? Será que era defensor da escravidão, quer a explícita e escrachada, quer a remunerada (via de regra pessimamente, por sinal)? Claro que não! Defendia o conceito, mas não a forma de sua aplicação. Defendia o trabalho prazeroso, útil, bem pago, aquele que nos enche de satisfação e orgulho face ao seu resultado, de preferência o voluntário e individual.

Este trabalho eu adoro! Sou inveterado “workaholic”, ou seja, sou viciado nele. Não consigo passar sem ele e não por causa do meu sustento pessoal e o da minha família, embora isso também conte, e muito. Mas, como observou Anatole France, “por desviar-me da visão assustadora de mim mesmo, impedir-me de olhar esse outro que sou eu e que me torna a solidão horrível”. Gosto, exerço e defendo esse que é “um santo remédio para a ética e a estética”.

Sei que muitos (provavelmente a maioria) não concordarão com minhas colocações. Paciência! Que trabalhem, trabalhem e trabalhem, mas com prazer e dignidade. Afinal, como Anatole France arrematou esse excelente texto: “O trabalho tem mais isso de excelente: distrai a nossa vaidade, engana a nossa falta de poder e faz-nos sentir a esperança de um bom evento”.





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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