Quando desperto

Há um filme norte-americano chamado Click, com Adam Sandler, reprisado à exaustão na TV, onde a personagem central é presenteada com um mágico aparelho de controle remoto, que permite “acelerar” passagens da vida, evitando o desgaste mais do que natural do viver. Brigas com a esposa, desentendimento com os filhos, tediosos cuidados com o cão da família, sexo rotineiro e marital, ao toque simples do aparelhinho brilhante e azulado, podem agora passar velozes na rotina de uma família de classe média americana.

É com muita cautela que atravesso a ponte próxima de casa, diariamente. Tábuas agastadas e mal sentadas convertem a ponte segura entre dois firmes lugares, numa fábula de aventura de medo e incerteza. Será necessário algo assim todo o dia? Mas não dou vazão ao desperdício, atravesso a perigosa ponte, agarrado às lembranças e desejos que me aguardam para o retorno. Pois sei, retornarei.

Nesta metáfora humilde é que adormecem desejos de um hoje menos arriscado, como se a idade que me pesa tivesse o brilho opaco de uma vida tediosa e covarde. Não há, por certo. Mas suas sombras, que a mim trazem medo, tornam-me um paranoico, querendo abreviar a distância entre o despertar e o repousar.

Esse o paralelo que me ocorre ao falar de ponte frágil de um dia difícil. A história que Hollywood nos apresenta, no evoluir da trama, mostra uma personagem enriquecida, mas deprimida e solitária, tudo pelo mal uso do aparelhinho acelerador do tempo e dos fatos. A personagem vivida por Adam Sandler, ao final recupera o que acreditava haver perdido, ou seja, a felicidade e a saúde, e respira aliviada. Para nós, brasileiros, talvez no pareça um exagero, afinal o mágico não está no controle remoto para se acelerar os dias, mas na existência inquestionável de uma vida sempre tranquila numa casa grande, com dois filhos bem cuidados e uma companheira amiga.

A ponte é frágil para quem dela se acovarda, e a mera lembrança de que é preciso cruzar por duas terríveis e inadiáveis vezes ao dia, é remédio amargo e não menos necessário. Mas a ponte me apavora, não importam os comentários. Atravessá-la, é enfrentar de olhos vendados um perigo maior do que qualquer sonho jamais sonhado: as tábuas rangem enquanto o vale, logo abaixo, liberta gemidos de suas profundezas.

Vago semidesperto de uma noite fria e incomodada, esperando o leite aquecer no fogão micro-ondas. À mesa, que vem sendo posta de pães e misturas, percebo o odor do café invadir a cozinha, o que lentamente me traz, num piscar, à realidade: no lado de fora da porta não há pontes, nem vales, tudo é plano. A filha chora, pede atenção, quer ver TV. Encontro o controle remoto sobre o sofá, escolho o canal dos desenhos animados. Fique bem, minha filha, papai sairá para sua própria e animada fábula do dia.





Escritor, poeta e cronista, Paulo Tedesco contribuiu por vários anos para diversos jornais brasileiros na Flórida-EUA. Conheça o Blog do autor - clique aqui!

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