Não olhar

A maior parte do meu sofrimento, como jornalista e, sobretudo, como pessoa, advém das aflições alheias. É proveniente da miséria, da violência, da exclusão social e da desagregação familiar de centenas de indivíduos ao meu redor, de milhares um pouco mais distantes, de milhões por todo o País e de bilhões através do mundo. Não se trata de querer parecer "bonzinho" perante os leitores. É uma questão de berço, de formação, de educação para a solidariedade. Não são minhas dores físicas, felizmente raras, que me incomodam. Não são minhas carências financeiras, não tão agudas, que preocupam. Não são meus desacertos emocionais que me tiram o sono. São os sofrimentos alheios que me consomem a alegria e o otimismo.

O pior nessa história é a impotência em ajudar esses outros que sofrem, dada a sua enorme quantidade. Qualquer ação nesse sentido que eu tome desaparece, se torna irrisória e invisível, é uma ínfima gota de água num oceano de carências. E minha situação financeira não é das melhores a ponto de me possibilitar tirar o pão da boca dos meus filhos para alimentar os dos outros. Ainda assim, busco contribuir com o pouco que tenho condição.

É verdade que o drama da miséria, do abandono e do egoísmo está longe de ser novo. O que aumentou foi a sua quantidade de vítimas, em decorrência do vertiginoso crescimento da população mundial. E não é somente a pobreza material que transforma um planeta tão belo na réplica do inferno. É a indigência espiritual. É a perda de valores. É a ausência de perspectivas. É o vazio de idéias. É o abismo de loucura no qual multidões se acham mergulhadas irremediavelmente.

Sempre procurei, ao máximo, preservar o meu texto do pessimismo que este panorama engendra, quer em reportagens, quer em artigos, quer em crônicas. Sei da responsabilidade que me pesa sobre os ombros enquanto formador de opinião. Por isso, busco sempre o ângulo mais favorável nos fatos – embora isto esteja se tornando cada dia mais difícil – para não multiplicar as angústias dos meus leitores, já assoberbados por tantas tensões.

O filósofo francês Gilles Deleuze abordou este drama do intelectual bem-informado, ao constatar: "Quando o escritor afronta a loucura e o silêncio, as palavras não esboçam mais nada, não se ouve nem se vê mais nada através delas, exceto uma noite que perdeu sua história, suas cores e seus cantos".

Ao artista de outros tempos, de séculos passados, ficava mais fácil limitar-se a descrever a beleza. A exaltar valores como o amor, a amizade, a solidariedade, etc. Havia misérias, injustiças, violência, loucura e dor tantas quantas agora (guardadas as proporções). Mas ele tomava conhecimento apenas de casos que ocorriam ao seu redor. Os meios de comunicação não lhe permitiam ir além. Pensava, por isso, que alhures houvesse um continente, ou uma região, ou um país, ou uma ilha da Utopia onde a vida transcorresse de forma ideal. Onde existissem manhãs radiosas e noites tranqüilas e tudo fosse motivo para risos, danças e encantamentos.

Hoje, um demente trucida 35 pessoas na Tasmânia, na distante Austrália, e quase simultaneamente tomamos conhecimento desse massacre. Um militar rancoroso dá ordem proposital de bombardear instalações da ONU no Sul do Líbano, repletas de refugiados, trucidando 102 civis, velhos, mulheres e crianças, e minutos depois a televisão nos exibe as imagens sangrentas. Policiais, transformados em jagunços, metralham esfarrapados trabalhadores rurais sem-terra no Sul do Pará e o vídeo da carnificina é exibido no telejornal que antecede a novela das oito como se não passasse de obra de ficção. E vai por aí afora.

Para uns, esse desfile diário de desgraças, violência e loucura age como fator de dessensibilização. Estes assimilam tais dramas como o fazem com o enredo dos filmes norte-americanos, da enorme montanha de lixo cultural que assistem na telinha. Mas para quem, por alguma razão – sorte, esforço sobreumano, meios ilícitos, etc – conseguiu a acidentada ascensão da miséria para um patamar social mediano, e que sentiu na própria carne os efeitos da exclusão social, esses fatos abrem feridas na alma. Tiram a alegria de viver. Produzem um travo amargo na boca e um aperto doloroso no coração.

O que fazer? Se omitir simplesmente? Agir como se nada estivesse acontecendo? Fechar os olhos ao drama que se desenrola ao redor? Se alienar do mundo e da realidade, se isolando em uma torre de marfim? A vontade é a de seguir o conselho do poeta Emílio Moura, expressado no poema "A boca da noite", que diz:

"Não olhes: é a noite
completa que tomba.
Não olhes: é a estrada
que súbito, acaba.
Não olhes: é o anjo,
teu anjo que chora.
Não olhes".

Como deixar de olhar e ainda continuar sendo um homem? Sim, como?





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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