Fazer e refazer

O homem tenta, de todas as formas imagináveis, vencer a morte. Não a física, que por uma fatalidade biológica, é a única certeza que tem neste mundo de aparências e mistérios. O que procura é algum tipo de sobrevivência. Não lhe passa pela cabeça que ao cabo de tantos sacrifícios e dores, do nascimento à velhice (quando consegue chegar a ela), tudo termine, como diz a letra do samba de Billy Blanco (imortalizado por Dóris Monteiro), "com terra por cima e na horizontal".

Há os que dão como certa outra existência, imaterial, incorpórea, "energética", num plano exclusivamente espiritual, em um hipotético Paraíso, crença abraçada (com poucas variações) por diversas seitas. Outros crêem que a única forma de sobreviver é através das obras, não importando sua natureza ou destinação. Outros, ainda, descrentes de outra vida, tentam aproveitar ao máximo seu tempo com a satisfação dos sentidos: comendo bem, amando muito, brincando o quanto possível. Enfim, se divertindo.

Como a fábula de La Fontaine, da Cigarra e da Formiga, assim são os homens. Enquanto uns trabalham, construindo templos, cidades, tumbas e monumentos, outros "cantam", gozando as delícias do ócio e do fruto do trabalho alheio. Enquanto uns criam, outros aproveitam e esbanjam. Qual o valor das obras, além daquele óbvio, utilitário, de uso imediato? São fontes (ou pelo menos oportunidades) de perpetuidade da memória, ou não passam de frustradas tentativas para evitar o esquecimento "post-mortem?"

Ninguém é capaz de responder com segurança essas questões. Os pioneiros da civilização, os que fizeram descobertas marcantes, práticas, que facilitaram ou até mesmo garantiram a sobrevivência humana, são absolutamente anônimos. Quem descobriu a roda? Ou a maneira de produzir o fogo? Quem foi o inventor do primeiro alfabeto? Ou da escala musical? Ou dos números? Ou dos princípios básicos da matemática? Estes são alguns dos fundamentos da civilização e foram criados por alguém. Mas por quem? Os pioneiros, os desbravadores, as mentes iluminadas que deram esses decisivos passos para que o homem saísse das cavernas, deixasse de ser fera e se tornasse a criatura nobre e inteligente que é (para o bem e para o mal), não contam com o reconhecimento do que legaram à espécie. Por que?

No plano intelectual, o valor das obras, para perpetuar a memória dos seus criadores, é ainda mais contestável. Livros maravilhosos, de reflexão e arte, de sabedoria e estilo, de precisão e beleza foram destruídos nas agressões de povos bárbaros, a outros com alto grau de civilização, com a perda total ou parcial de magníficas bibliotecas. Ao longo dos séculos, foram inúmeras as vezes em que a força bruta prevaleceu sobre a razão, resultando em irrecuperável retrocesso espiritual e até material. Feras embrutecidas e furiosas eliminaram todos os vestígios da reflexão de esplêndidos pensadores, reinstalando a barbárie. E foram inúmeros os casos desse tipo registrados pela história. Fora os que ocorreram e nem registro tiveram (provavelmente em maior número), destruídos pelos inimigos da civilização.

É possível a um escritor dos dias atuais ser original, em se levando em conta que milhões de livros, de todos os gêneros e assuntos imagináveis, são publicados no mundo, anualmente? Quantos desses intelectuais vão ser lembrados dentro de dois, cinco, dez, cinqüenta ou cem anos? Ou em um, dois, cinco ou dez séculos? Ou em três, quatro, seis ou dez milênios, como Homero, Píndaro, Heráclito, Platão ou Aristóteles? Os nomes citados, e outros tantos, considerados "clássicos" do pensamento mundial, sobrevivem, em grande parte, na memória das gerações, não apenas por causa da relevância de suas obras, mas porque outros intelectuais sempre se nutriram e se nutrem de suas idéias, para fundamentar as próprias. Paul Valéry observa: "Nada é mais original, nada é mais você mesmo do que se nutrir dos outros". Trata-se de um processo de "simbiose" intelectual, de "parasitismo" em que as duas partes lucram.

Há casos, não tão raros como se pensa, em que duas obras, escritas em períodos distintos, sem que a posterior plagie a anterior e sem que o autor da segunda sequer conheça por referência o da primeira, que guardam semelhanças que parecem, de fato, se tratar de plágio. E não são. Como explicar que dois intelectuais, separados no tempo e no espaço, com personalidades e formações distintas, raciocinem de formas tão iguais? Valéry escreve a respeito: "Existem obras cuja relação com outras, anteriores, é tão intrincada que nos deixa confusos, a ponto de atribuí-las à intervenção direta dos deuses". Ou do acaso? Ou da coincidência? Ou do que quer que seja?

Minha esperança de sobreviver ao tempo, à morte e ao esquecimento está num outro procedimento, mencionado por Paul Valéry: "O valor das obras de um homem não está nas obras, mas em seu desenvolvimento pelas mãos de outros, em outras circunstâncias". Como, aliás, tenho feito em relação a milhares de escritores que cito (a maioria intelectuais já mortos), cujas idéias utilizo para fundamentar e dar credibilidade às minhas. Conto com idêntica generosidade dos pósteros. Espero que me garantam pelo menos essa fugaz "imortalidade"...





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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