Ciência e arte da escrita

A exposição do que quer que seja – pensamentos, sentimentos, descrições, fantasias, informações, opiniões etc. –, por escrito, é, na minha modesta visão, simultaneamente, arte e ciência. Sobretudo a feita com perícia e exatidão, com rigoroso apuro na utilização das regras do idioma e cristalina clareza, que torne o texto acessível às pessoas de qualquer nível de cultura e conhecimento sem necessidade de recorrer a dicionários. Parece tarefa simples, não é verdade? Mas, creiam-me, não é. Tanto é complexa, que a redação é disciplina obrigatória, e eliminatória, em vestibulares, concursos e exames do Enem. Se fosse fácil, não seria sequer incluída nessas provas de caráter seletivo. Escrever, qualquer pessoa alfabetizada é capaz de fazer. Mas fazê-lo bem é prerrogativa de poucos, de pouquíssimos intelectuais.

Por isso, valorizo tanto os profissionais do texto (os bons, evidentemente), sobretudo jornalistas e escritores, que fazem da escrita, simultaneamente, ciência e arte. Claro que não basta o sujeito exercer essas profissões para, automaticamente, escrever bem. Nem todos escrevem com a desejável perícia. Como em todas as atividades, nestas duas que citei, também, há os devidamente preparados, aplicados e atentos e os que o vulgo chamaria de “meias bocas”, ou seja, que apesar de exercerem essas funções ou não estão capacitados para elas, ou não gostam do seu exercício, quando não as duas coisas ao mesmo tempo.

Aliás, nem é necessário gostar de escrever (embora seja desejável) para fazê-lo bem. Muitos não gostam, mas são peritos nesta ciência, que também é arte. Há abissal distância entre “gostar” de alguma atividade e “saber” exercê-la com correção e competência. Tratei desse assunto em recente crônica, neste espaço, e destaquei esse aspecto. Assinalei que “entre os textos de Eugênio de Andrade, encontrei estas confidências, que considero surpreendentes, mas pitorescas: ‘Eu nem sequer gosto de escrever. Acontece-me às vezes estar tão desesperado que me refugio no papel como quem se esconde para chorar. E o mais estranho é arrancar da minha angústia palavras de profunda reconciliação com a vida’”. Todavia, quem teve o privilégio de ler algum livro desse autor pode constatar que ele é excelente, por qualquer critério que se utilize para avaliar seus textos.

E Eugênio de Andrade não é o único escritor que revelou não gostar de escrever. Conheço inúmeros outros casos e todos envolvendo “ases” da Literatura, clássicos cujas obras superam o tempo e o esquecimento pela excelência. Não se trata, pois, de gostar ou não gostar, mas de saber ou não saber. Se não gostando de escrever, Eugênio de Andrade nos legou pérolas tão preciosas, páginas tão densas, emotivas e tão perfeitas, imaginem se gostasse! Seu segredo estava, pois, no domínio dessa ciência que também é arte e não na sua apreciação.

Pior é quando um autor se precipita, deixa de lado a autocensura e permite a publicação de textos dos quais venha a se arrepender no futuro de ter escrito. Mesmo os bons escritores, às vezes, cometem esses atos de imprudência. Precipitam-se, empolgam-se, deixam-se cegar pela vaidade e publicam livros que repudiam anos mais tarde, quando adquirem maior experiência e consolidam um estilo. Na escolha de um texto, para leitura e reflexão, raramente nos detemos no conteúdo. E nem podemos. Apegamo-nos, muito mais, ao estilo do autor (em geral com nome já firmado) mesmo que o teor seja um lixo. Até porque, a menos que conheçamos outras obras do mesmo autor, nunca sabemos (é claro, antes de ler), o que determinado livro contém. Por isso, o compramos e depois nos arrependemos. Quase sempre, formamos precipitado conceito sobre esse escritor. Ou seja, nunca mais compramos mais nada do que ele escreve, sem atentar para o fato que as pessoas não raro evoluem.


É evidente que o sucesso ou fracasso de um escritor independe, “apenas” do seu talento e da qualidade e substância do seu texto. O "marketing", por exemplo, conta muito, assim como a exposição na mídia e uma crítica favorável, fatores, aliás, que nos induzem freqüentemente ao erro e nos levam a comprar "gato por lebre". Ou seja, a adquirir obras sofríveis como sendo autênticos "pilares da cultura". Reitero que escrever é um ato muito mais complexo do que pensamos ou admitimos. E, às vezes, é até perigoso.


Raciocinemos. Se na conversação informal, naquela que utilizamos no dia-a-dia, no lar, no trabalho e em nossas relações sociais; a comum, trivial, corriqueira e na maioria das vezes eivada de incorreções vocabulares e gramaticais, e que quase nunca é policiada, temos enorme responsabilidade por tudo o que dizemos (embora sequer atinemos), dadas as conseqüências produzidas, muito mais importante se torna, é evidente, o que escrevemos, e como o fazemos. Entre outras coisas, nunca sabemos, por exemplo, em que mãos esses textos vão cair, qual o uso que deles será feito e, principalmente, por quem.


Entre as necessidades imprescindíveis para que possamos escrever bem, a principal é a de termos absoluto domínio sobre o assunto que nos propusermos a tratar. Convenhamos, nem todos têm esse cuidado. Daí perpetrarem barbaridades de fazerem corar até estátuas de pedra, caso isso fosse possível. Há sentimentos, por exemplo, que por mais peritos que sejamos no uso da linguagem, por mais expressivos que sejam os termos que empregarmos, se mostram impossíveis de serem expressos. Fujamos deles!


Quantas vezes, em face da pessoa amada, queremos dizer-lhe o quanto a amamos e só conseguimos balbuciar palavras toscas, que a nós parecem de imensa indigência! Imaginem isso tudo por escrito! Soa ridículo! É certo que os que sabem ler a linguagem dos gestos, como a profundidade do olhar, a força do sorriso, a magia do toque, a possessividade do abraço e o desespero do beijo, recebem essas mensagens. Ainda assim, não expressam, na totalidade, a grandeza dos sentimentos. E esses recursos são impossíveis de se utilizar, óbvio, em textos, nos quais vale apenas o escrito, não o sentido ou o pensado.

Quantos versos não deixam de ser compostos por fugirem as palavras adequadas que os deveriam revestir! Eu mesmo “abortei” dezenas de poemas por minha inabilidade de expressar o que estava sentindo em determinado momento. Nesses casos, desistir de escrever é a atitude mais prudente, se não a mais sábia, a adotar, mesmo que a desistência nos frustre (e frustra mesmo). O chileno Carlos Trujillo faz essa intrigante indagação, no poema “Poemas do passado escritos hoje”:


“Palavras mastigadas no milênio completo
a que anos-luz
em que galáxia
se encontra aquele poema
que não encontra minha pena?”





Jornalista, radicado em Campinas, mas nascido em Horizontina, Rio Grande do Sul. Tem carreira iniciada no rádio, em Santo André, no ABC paulista. Escritor, com dois livros publicados e detentor da cadeira de número 14 da Academia Campinense de Letras. Foi agraciado, pela sua obra jornalística, com o título de Cidadão Campineiro, em 1993. É um dos jornalistas mais veteranos ainda em atividade em Campinas. Atualmente faz trabalhos como freelancer, é cronista do PlanetaNews.com e mantém o blog pedrobondaczuk.blogspot.com. Pontepretano de coração e autêntico "rato de biblioteca". Recebeu, em julho de 2006, a Medalha Carlos Gomes, da Câmara Municipal de Campinas, por sua contribuição às artes e à cultura da cidade.

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